Delaware Review of Latin American Studies
Issues
Vol. 11 No. 2   December 30, 2010


Além da Geração Coca-Cola: o (inter)nacional e a redescoberta do Brasil no rock dos anos 80

Diego Santos Vieira de Jesus
Instituto de Relações Internacionais
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
dsvj1408@terra.com.br


Resumo

Tendo em vista que a elaboração de narrativas e contranarrativas em seus diversos gêneros traz à tona a dinâmica de definição espaço-temporal da cultura nacional, o objetivo do artigo é focar o embate entre projetos de construção e consolidação da identidade nacional e seus modos de resistência no contexto da música produzida no Brasil na década de 1980. O argumento principal aponta que o rock nacional, embora compartilhasse a crítica da MPB com relação às instituições político-econômicas domésticas, propunha-se a um diálogo mais intenso com outras culturas como a anglo-saxônica e permitia a desestabilização de tendências polarizantes que objetificam a diferença no nível internacional, proporcionando respostas aos desafios da interação com a diversidade por meio da auto-reflexão crítica e da aliança entre críticas sociais culturalmente diversas à desigualdade.

Palavras-chave: identidade, Brasil, rock, Música Popular Brasileira

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Michael Shapiro (2004) ressalta que o Estado-nação, ao traduzir o corpo biológico como social, procura aprisioná-lo num aparato de sujeição que reafirma um projeto particular de produção de unidade cultural nacional. Porém, simultaneamente, uma série de trabalhos artísticos que não são abarcados pelos mecanismos de governança cultural ligados ao Estado-nação desenvolve mecanismos alternativos de adesão e problematiza tal unidade das culturas nacionais. Esse embate era visível no contexto da música produzida no Brasil na década de 1980, já que, naquele contexto, a cultura nacional também se redefinia em várias dimensões. Como lembra Weber (1995), o próprio significado da soberania do Estado-nação é fixo, estabilizado e reproduzido historicamente pela criação de mitos e símbolos e de estratégias discursivas refinadas que possam garantir a coesão e o consentimento entre os cidadãos. Nesse processo de construção intersubjetiva, uma das práticas simbólicas e discursivas que demonstraram efeito na construção da unidade cultural brasileira na segunda metade do século XX foi a Música Popular Brasileira (MPB). Tal gênero musical ganhara espaço durante o período da ditadura militar brasileira – particularmente ao longo das décadas de 1960 e 1970 – por meio das “músicas dos festivais” de cantores como Chico Buarque e pelas “canções de protesto” de cantores e compositores como Geraldo Vandré. No período da repressão conduzida pelo governo militar, a MPB congregava a música de matriz nacional-popular e desenvolvia letras com mensagens engajadas e cobertas de metáforas e outras figuras de linguagem, com o objetivo de criticar o autoritarismo e a violência física e sociopolítica da ditadura em relação à população. A sua ampla capacidade de aglutinamento das pessoas – em especial estudantes universitários – em torno de eventos musicais e de reflexão sobre as condições sociopolíticas do país era uma constante preocupação dos agentes repressores do Estado autoritário (Napolitano, 2004).

Com o início do processo de redemocratização na década de 1980, a MPB – que simbolizara a resistência ao regime autoritário no nível doméstico – tomou a liderança do cenário musical brasileiro e estimulou o sentido de coesão num país recém-democrático, no qual sinalizava uma nova era que se superavam a falta da liberdade de pensamento e de expressão e o funcionamento da censura e da repressão. Porém, muitos artistas que produziam nesse gênero1 condenavam outros estilos musicais como o rock que eram vistos como servos da “política imperialista norte-americana”, concebida como uma ameaça cultural e política a um país que buscava afirmar sua posição relativa no nível regional e alcançar o desenvolvimento. Do ponto de vista geopolítico, a imagem internacional do Brasil como país emergente estava associada em parte à maior influência do país no Cone Sul com a consolidação da cooperação bilateral com vizinhos e à busca de angariamento de esforços para a ampliação da sua capacidade de negociação em fóruns políticos e econômicos multilaterais. Nesses fóruns, os EUA reforçavam os privilégios dos países desenvolvidos e as assimetrias em relação ao desenvolvimento, e sua produção cultural era vista como ameaça à construção de uma identidade coesa no Brasil. Nesse contexto, a música tinha uma função importante na conscientização da população brasileira em torno de um novo projeto de país e da sinalização de obstáculos a uma participação mais assertiva no nível externo.  Como ressalta Dapieve (1996), quem não estivesse engajado em canções de protesto ou em pesquisas “de raiz” era concebido por grande parte dos artistas da MPB como narcotizado pela “ideologia ianque”, jogando contra a proposta de autonomia e independência que era difundida pela idéia de “nação livre” desenvolvida pela MPB.

O principal alvo das críticas da MPB no âmbito cultural era o rock brasileiro dos anos 80, que vinha influenciado pelo movimento punk do eixo anglo-saxônico e superava a purple-haze LSD-progressiva dos anos 70 e o instrumental state-of-art. Em vez de simplesmente assimilar acriticamente essas influências externas no seu modo de agir e pensar em face da penetração maciça de enlatados culturais norte-americanos, grande parte dos músicos e dos compositores do rock criticava uma postura alienada de boa parte da juventude em relação à realidade sociopolítica brasileira. Sua proposta era, por meio de uma linguagem mais simples e livre de recursos lingüísticos obscuros e complexos, enfatizar dilemas sociais e individuais que a juventude do país enfrentava nos principais centros urbanos. Ao mesmo tempo em que reafirmava a valorização da cultura nacional como a MPB, o rock desenvolvia um diálogo mais profícuo com a diferença cultural no nível internacional em vez de criticar ou de rejeitar a influência externa – particularmente anglo-saxônica – na sua produção. Dentre seus principais temas, estavam as questões da vida cotidiana e familiar da juventude da década de 1980 – amor, sexo, problemas com os pais –, como também a crítica aos problemas relacionados a uma estrutura política corrupta, à violência da ação policial e a um modelo econômico excludente, cujos aparatos de marginalização eram reforçados pelas pressões internacionais advindas da crise da dívida e da globalização da miséria. Nesse sentido, o rock propunha uma crítica à atuação do aparato político do Estado recém-democrático e mostrava que, em vez de ser simples receptáculo e reprodutor de influências anglo-saxônicas, compartilhava as experiências de outras sociedades na organização da crítica aos descaminhos políticos internos e externos e desestabilizava a idéia etnocêntrica que a maior parte da população fazia do próprio rock (Dapieve, 1996).

Seguindo a visão de Shapiro (2004) de que a elaboração de narrativas e contranarrativas em seus diversos gêneros traz à tona a dinâmica de definição espaço-temporal da cultura nacional, pretendo focar o embate entre projetos de construção e consolidação da identidade nacional do Estado e seus modos de resistência no contexto da música produzida no Brasil na década de 1980. Mais especificamente, o objetivo desse artigo é, após a identificação da crítica a referenciais culturais anglo-saxônicos na produção da identidade nacional brasileira por grande parte da MPB, demonstrar o embate entre tal posição e a proposta alternativa do rock produzido no Brasil na década de 1980. O argumento central que procuro desenvolver é o de que o rock nacional, embora compartilhasse a crítica da MPB com as instituições político-econômicas domésticas, tinha diferentes entendimentos quanto à influência cultural externa: o diálogo cultural promovido pelo rock com outras culturas como a anglo-saxônica permitia a desestabilização de tendências polarizantes que objetificam a diferença no nível internacional e proporcionava a auto-reflexão crítica e a aliança entre críticas sociais culturalmente diversas à desigualdade.

Cumpre lembrar que os dois gêneros considerados – MPB e rock – não são os únicos a serem produzidos no Brasil ao longo da década de 1980, nem mesmo são homogêneos ou todos os seus representantes adotavam as mesmas posturas com relação à construção da identidade nacional e à interação com a influência externa anglo-saxônica. Procurarei focar nas obras de alguns de seus principais artistas representativos do argumento central e estou ciente das limitações que tal posição gera em nível de generalização das conclusões centrais e de uma menor consideração da especificidade da obra de cada artista. Porém, o propósito do artigo é estimular reflexões mais avançadas sobre a relação entre os estudos culturais sobre o processo de construção de identidades nacionais a partir da música na América Latina e os estudos críticos da área de Relações Internacionais, particularmente no que diz respeito ao relacionamento com a diferença em práticas intersubjetivas no nível internacional (Shapiro, 2004; Blaney & Inayatullah, 2004). Primeiramente, apresentarei o argumento principal de Shapiro (2004) acerca da problematização da construção e da manutenção dos Estados-nação e dos métodos de formação de nações culturalmente coesas, bem como do reconhecimento de mecanismos de expressão cultural e política alternativos às práticas homogeneizantes de criação das culturas nacionais a partir da negação de outsiders. A seguir, desenvolverei como o rock brasileiro nos anos 80 surge como um desafio às práticas homogeneizantes de criação da identidade nacional e de refutação da influência externa anglo-saxônica e, posteriormente, examinarei os principais locais de enunciação de tais discursos alternativos às práticas de governança cultural e as fronteiras que procuraram desestabilizar em relação à diferença cultural no nível internacional, antes de tecer as considerações finais.

Narrativas e contranarrativas na definição espaço-temporal da cultura nacional
Shapiro (2004) questiona conceitos de construção e manutenção dos Estados-nação e métodos de formação de nações culturalmente coesas e promove o reconhecimento de mecanismos de expressão política alternativos às práticas homogeneizantes de criação das culturas nacionais. O autor oferece um tratamento complexo à linguagem: transcendendo a mera relação entre declarações e referentes, a perspectiva semiológica examina a inteligibilidade inter-relacionalmente num sistema simbólico. Elucida-se, assim, como perspectivas culturais particulares apontam para a imposição de ordens de significado às custas de outras. A partir de uma perspectiva foucaultiana, Shapiro desvela que discursos de conhecimento sobre "razão" ou "verdade" não remetem a noções subjacentes ou fundacionais, mas são gerados como exercícios de controle em circunstâncias históricas específicas. O poder implicado nos sistemas de conhecimento compõe novos objetos discursivos e locações privilegiadas a partir das quais é possível a expressão legítima e inteligível e é examinado no seu caráter relacional. Tal poder estende-se inclusive ao corpo do indivíduo, investido por relações de dominação.

Num momento em que amplia a esfera de subjetivação e não assume uma retórica despolitizante da diferença, Shapiro rejeita a padronização e, ao enfocar a dinâmica de encontros históricos entre perspectivas distintas de produção de significado, oferece uma interpretação que desafia a autoridade do local de enunciação dominante e proporciona a auto-reflexão a partir da consideração de incoerências e alteridades nas práticas de inteligibilidade. Tal procedimento traz à tona projetos silenciadores de múltiplas vozes numa política totalizante contida nas culturas nacionais, forjadas por um sistema único de significado. Memórias contestadoras da produção cultural do Estado-nação revelam que a nação não é homogênea ou fundacional e que as segmentações internas que fortalecem o Estado como locus de autoridade são instáveis: em nível histórico, como o controle dos Estados-nação sobre espaços e corpos foi gradualmente problematizado, sua autoridade mostra-se interpretativa e performática, de forma que eles "atuam" visando à preservação de seu status ontológico e prático (Shapiro, 2004, p. XI-XVII).
Contudo, as práticas materiais e interpretativas que sustentam metafisicamente os Estados-nação podem ser desafiadas, de forma que as nações são concebidas como processos contenciosos historicamente específicos, os quais garantem sua permanência simbólica a partir de práticas institucionalizadas. A arbitrariedade na busca de fundações espaço-temporais para a nacionalidade torna-se evidente na instabilidade do processo de construção nacional, quando produções culturais localizadas revelam a incompletude da integração nacional pela "máquina de captura" estatal. Shapiro evidencia que o espaço doméstico é heterogêneo e as demarcações entre Estado e sociedade civil são mutáveis. O poder não é mais concebido de forma essencializada em termos do comando e da obediência à autoridade soberana, mas de práticas múltiplas que despertam a contestação por novas vozes (Shapiro, 2004, p. 33-67).

A mobilização de múltiplos modos de governança cultural2 como complementos de monopólios coercitivos é compreendida como um processo histórico de imposição de fronteiras e hierarquização de culturas no nível internacional em níveis distintos de coesão cultural, resultantes do exercício de poder. Além disso, Shapiro destaca que o conceito de biopoder envolve uma dimensão expansionista e militante, de forma que o Estado-nação moderno tem gradualmente percebido a necessidade de conter ameaças políticas, econômicas, culturais etc. no nível internacional. Nesse sentido, as delimitações estatais não são dadas ou estagnadas, mas artifícios flexíveis que preenchem uma ambição reguladora. Além da consideração histórica da diversidade de locais de enunciação de vozes definidoras do status do Estado-nação, Shapiro (2004, p. 26-31) elucida a resistência à homogeneização estatal e revela que o conhecimento é fruto da dinâmica interação de perspectivas em constante transformação, não de circunstâncias essencializadas nas fronteiras reificadas do Estado-nação. Ao situar-se a produção de conhecimento no centro da análise histórico-política sem apartá-la da produção de poder, a ênfase na resistência à inscrição de corpos em ordens semióticas impostas por uma autoridade centralizadora e no desafio às tentativas de homogeneização permite problematizar a suposta naturalidade das práticas que as viabilizaram. Tal atitude interpretativa não somente identifica como as práticas de poder são criadas, mas desconstrói as concepções deterministas de sociedade e evidencia quão arbitrárias são as estruturas reificadoras que marcam o pensamento.

O rock como um desafio às práticas homogeneizantes de criação da identidade nacional
O rock produzido nos anos 80 compartilhava com a MPB a realização de críticas contundentes ao mecanismo de exclusão socioeconômica que operava no Brasil, mesmo após a implementação do regime democrático. Enquanto a MPB precisara driblar a censura durante a ditadura militar – que se estendeu de 1964 a 1985 – a difusão das músicas de letras mais fáceis e menos rebuscadas do rock no país foi possível em face da redemocratização iniciada pelos governos de Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985). Com a realização das reformas liberais na dimensão político-econômica, o governo autoritário no Brasil entrou num gradativo processo de desintegração. A associação de interesses do governo norte-americano a uma série de governos repressores na América Latina fazia com que a imagem dos EUA fosse associada por muitos opositores desses regimes – como grande parte dos artistas engajados na produção da MPB – ao imperialismo e à construção de projetos hegemônicos que tolheriam as liberdades políticas na sua vizinhança. Elementos característicos da sua cultura como o rock n’roll eram rotulados como instrumentos de dominação cultural e ideológica da periferia, além de conduzirem à marginalização dos elementos característicos da cultura nacional. Conforme a MPB se consolidava no mainstream musical brasileiro acompanhando as transformações políticas em curso, a visão crítica em relação às influências externas – particularmente da música norte-americana – levava à perpetuação de práticas excludentes em relação à produção cultural dos EUA e dos países da região anglo-saxônica no processo de redefinição da identidade brasileira no seu caminho para a democracia. Como ressalta Rocha (1984, p.18-20), a aplicação de rótulos e estereótipos dessa espécie operava de forma a guiar o confronto cotidiano com a diferença – no contexto, a produção musical anglo-saxônica –, e as idéias etnocêntricas criavam um “conhecimento” e um “saber” baseado em formulações excludentes que transformavam a diferença em alteridade, desenvolvendo-se juízos de valor em relação a ela.

Operava, assim, uma perspectiva de estabilização e de normalização do significado, em que a interpretação e a prática asseguram seu poder e reconhecimento recorrendo a uma subjetividade necessária. O “Outro” – no caso, a influência cultural anglo-saxônica – era entendido com referência a tal centro numa perspectiva de inferioridade. Dá-se efeito a uma hierarquia na qual esse “Outro” é compreendido como uma negação da identidade, de forma que o sujeito produz o seu exterior como um objeto (Walker, 2005, p.6). O processo de estabelecimento de fronteiras da nova identidade nacional em relação aos referenciais culturais norte-americanos estendia a rotulação à dimensão doméstica, na medida em que aqueles artistas que não se engajassem no processo político eram rotulados como “alienados”, “pouco comprometidos” ou “vendidos” aos interesses norte-americanos. A resposta hierarquizante e disciplinadora à diferença domesticamente equivalia ao seu tratamento na esfera externa: entendida como elemento desestabilizador da harmonia doméstica, a diferença era gerenciada internamente com hierarquia, desprezo ou erradicação, enquanto a externa era vista como ameaça constante interditada nas fronteiras e enfrentada (Blaney & Inayatullah, 2004, p.44-45).

Após a campanha das Diretas Já pela realização de eleições diretas para a presidência da República em 1984, iniciara-se a transição pacífica para a democracia, mas também se tornavam evidentes o agravamento da taxa de inflação, a dívida externa galopante que chegava a mais de 80 bilhões de dólares e a recessão provocada pela introdução de reformas exigidas pelas instituições econômicas internacionais. Na visão de Ohlweiler (1986., p.190-191), o objetivo da Nova República com a inserção do Brasil na órbita neoliberal seria a retomada do desenvolvimento em termos de um capitalismo monopolista associado, que implicava a privatização dos setores básicos da economia estatal. Para os setores mais críticos da sociedade, isso representava o fortalecimento da hegemonia do capital estrangeiro e o aprofundamento do processo de monopolização dependente em relação aos EUA. O quadro de crise interna alimentava as críticas da população, inclusive do setor artístico que informava e formava a opinião de grande parte dessa sociedade que começava a participar mais decisivamente da atividade política. No campo cultural, artistas da MPB reforçavam suas críticas não apenas ao aparato institucional de influência econômica dos EUA na América Latina, mas à influência de sua cultura no Brasil e à suposta descaracterização da identidade nacional promovida por tal influência.

Como destaca Dapieve (1996), a MPB se consolidava como o mainstream musical brasileiro, representante da identidade nacional legítima, mas começara a demonstrar dificuldade em se livrar dos seus antigos artifícios – linguagem rebuscada, metáforas impenetráveis, primado do subentendido – em face do abrandamento da censura. Além disso, temas relativos à juventude urbana dos anos 80 nas principais capitais brasileiras eram relegados em segundo plano pelos artistas desse gênero, de forma que aos poucos se evidenciava que a MPB já não conseguia cobrir as necessidades e as aspirações da geração da abertura política. Além disso, a implementação do Plano Cruzado em 1986 pelo primeiro presidente da Nova República, José Sarney – cujo governo foi de 1985 a 1990 –, tinha a meta de frear a inflação e permitiu que o presidente adotasse medidas como o congelamento geral dos preços, gatilho salarial, reajuste do salário mínimo, abono geral e deflação das dívidas contraídas em cruzeiros. Isso viabilizou a abertura das portas da sociedade de consumo para brasileiros de classes mais baixas e a difusão de novos ritmos na massa. Com o aumento do poder de compra da população, a indústria fonográfica poderia obter vendas maiores para os padrões nacionais explorando novos gêneros e nichos do mercado. A euforia econômica do Plano Cruzado durou pouco em face das crises de desabastecimento, da consagração da cobrança de ágio e da proximidade de uma hiperinflação, os novos planos econômicos – como o Plano Bresser e o Plano Verão – pouco fizeram para reverter o quadro, além da descrença de grande parte da sociedade em relação ao governo diante de escândalos financeiros e da corrupção crescente no meio político (Dapieve, 1996). Nesse sentido, as dificuldades enfrentadas pela MPB pós-abertura política, a popularização do rock e a permanência dos problemas sociais após o Plano Cruzado permitiram ao rock nacional ganhar maior visibilidade como um propulsor de críticas sociais e desenvolver um outro perfil de interação com a cultura dos Estados da região anglo-saxônica do que aquele estabelecido pela MPB.

Visando a desestabilizar o saber etnocêntrico construído acerca dele próprio, o rock nacional dos anos 80 procurava superar a marginalidade que lhe havia sido imputada e construía de uma concepção alternativa – mas não menos crítica – da identidade nacional. Preservando a consciência crítica em face da incapacidade do Estado brasileiro em sanar os problemas da nação e à própria falta de ética na política, tal gênero trazia um entendimento alternativo ao diálogo com a cultura produzida no eixo anglo-saxônico e operava com base no aprendizado do tratamento das ambigüidades geradas na interação com a diferença. Mostrava-se, assim, mais voltado para o reconhecimento da diversidade, a exploração das possibilidades alternativas das zonas de contato psicológico e social com outras culturas e o diálogo potencial que colabora para a elucidação mútua dessas culturas. Ao não propor a busca por uma ordem isomórfica, o rock abriu espaço para o reconhecimento do Outro dentro do Eu e o compartilhamento de experiências visando à sua superação de dificuldades comuns a tais culturas. Assim, funcionava não apenas como uma fonte de auto-reflexão para a juventude brasileira nos anos 80 ou mesmo de transformação cultural para uma identidade nacional mais rebelde e incisiva, mas estabelecia meios de contato e de conversação entre tradições que respondem à opressão e aos desafios das ordens político-econômicas doméstica e internacional. São recuperadas vozes recessivas na interpretação do contexto histórico e dos debates intelectuais, desessencializando entendimentos dominantes, e estabelecido o vínculo entre tradições recessivas na própria identidade e as demais culturas a fim de se oferecer uma visão de libertação em relação à opressão para Eu e Outro (Blaney & Inayatullah, 2004, p.21-28, 32-45).

O rock nacional permitia, assim, uma “redescoberta do Brasil”, investindo numa postura consciente dos problemas que imperavam na sociedade brasileira, mas, ao mesmo tempo, interagindo mais com a cultura anglo-saxônica a fim de buscar não só sons mais agressivos, mas meios de elaboração de uma crítica social mais consistente não apenas em relação aos problemas característicos da sociedade brasileira, mas daqueles cujas causas estavam no nível internacional e dos quais também outras sociedades sofriam. Como destaca Rocha (1996, p.18), a redescoberta do Brasil é, em certo sentido, aprender que estamos inseridos na compulsão das descobertas. Neste caso, a redescoberta da identidade brasileira permitia que, na dimensão doméstica, fossem reconhecidos e considerados na construção dos valores nacionais novos temas de uma parcela da sociedade até então relegada em segundo plano pelo mainstream musical. No nível externo, tal redescoberta apontava para uma dimensão ainda mais universalizante da cultura brasileira, não pela assimilação de padrões pasteurizados vindos do eixo anglo-saxônico, mas pela promoção do diálogo com os elementos culturais desse eixo a fim de superar problemas internos e externos vividos pelo Brasil após a abertura política.

Os locais de enunciação alternativos do rock brasileiro dos anos 80
No Brasil, o rock produzido nos anos 80 mantinha amplo diálogo com o movimento punk, surgido no eixo anglo-saxônico na metade da década de 1970 e abarcando a produção musical, a moda e o comportamento. Tal produção cultural era bastante plural, mas era predominantemente caracterizada pela valorização da autonomia – o lema do do-it-yourself –, pela subversão não-coerciva dos padrões político-culturais tradicionais, pela crítica social a partir do interesse pelo ofensivo / agressivo e pela simplificação na produção musical (Colegrave & Sullivan, 2001). Como nos EUA e na Inglaterra, o movimento punk repercutiu primeiramente no Brasil no proletariado, que logo se identificou com a revolta politizada do punk rock dos Sex Pistols e dos Ramones no nível internacional. Se os primeiros grupos punk no Brasil surgiram no fim dos anos 70 a fim de protestar contra os abusos da ditadura militar, aqueles que se desenvolviam nos anos 80 canalizavam as aspirações de grande parte da juventude brasileira mais pobre nos grandes centros urbanos. As condições de vida dessa juventude degradavam-se ainda mais com o quadro de crise econômica generalizada e de insuficiência de atuação política do aparato estatal brasileiro pós-redemocratização. O movimento punk-rock brasileiro rapidamente se firmou na periferia dos principais centros urbanos do país: em São Paulo, havia manifestações em pequenas boates e bares de operários da Freguesia do Ó e Vila Carolina; no Rio de Janeiro, em pistas de skate em Campo Grande e numa gafieira, a Dancing Méier (Dapieve, 1996).

Ao passo que a MPB foi se tornando uma música característica para a crítica de intelectuais e elementos mais letrados da sociedade e custava cada vez mais caro às gravadoras sustentar um gênero hipertrofiado, o rock brasileiro dos anos 80 dialogava com a produção cultural punk dos grandes centros urbanos anglo-saxônicos e identificava elementos que poderiam ser compartilhados com as outras culturas no seu combate comum às assimetrias acirradas com o desenvolvimento contemporâneo do capitalismo. Tais elementos iam desde a busca de uma sonoridade mais simples e agressiva até a rebeldia e a subversão de padrões políticos excludentes incorporados nas instituições estatais. Com isso, a crítica social ganhava mais consistência e direcionamento na zona de contato com a diferença, permitindo o aprimoramento dos meios de auto-reflexão sobre o papel político daquela juventude na transformação da realidade brasileira e a elucidação de novos problemas surgidos e acentuados com o processo de redemocratização e de maior participação do Brasil no sistema internacional. Aos poucos, o rock ganhava popularidade e não apenas transcendia a classe social em que mais se desenvolvera – o proletariado –, como também chegava a outros centros urbanos fora do eixo Rio-São Paulo, como Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte. Os problemas de causa doméstica e os impactos dos desenvolvimentos externos afetavam de diferentes formas todos os setores da sociedade brasileira e a organização socioeconômica em todo o seu território; por isso, a mensagem crítica do rock aprofundou-se e se expandiu nacionalmente, mas incorporando as influências regionais de cada área do país e resistindo à homogeneização ao manter constante diálogo com as influências externas do eixo anglo-saxônico.

Um exemplo da crítica crescente articulada pelo rock em diálogo com as críticas que se podiam perceber em outras regiões do planeta pode ser visto no terceiro álbum do cantor Cazuza, “Ideologia”, lançado em 1988. Nos primeiros versos da faixa-título – “Meu partido / É um coração partido / Os meus sonhos foram todos vendidos / Tão barato que nem acredito” –, a metáfora sonho/mercadoria serve de veículo para a denúncia da banalização do sonho e das aspirações do ser humano em geral, que, diante da agressividade do capitalismo, desumaniza o ser humano e o torna tão descartável quanto uma mercadoria que só importa pelo seu valor material. A tendência era acirrada pela introdução das reformas liberais na sociedade brasileira – como o fora em outras regiões do planeta –, em especial porque, na visão de Cazuza na música, “meus inimigos estão no poder”. A desilusão e a falta de mobilização de grande parte da juventude e a falência de tantas ideologias que norteiam a luta por transformação social – “Pois aquele garoto que ia mudar o mundo / Agora assiste a tudo em cima do muro” – eram criticadas na letra e remetiam à alienação em relação a mecanismos transformativos das ordens políticas por grande parte da sociedade, característica também de outras sociedades com cuja produção cultural o rock nacional dialogava. Muitas das causas cuja reflexão a música permite estavam no nível doméstico, mas eram acentuadas pela lógica excludente e alienante do capitalismo no nível externo.

A maior consciência sobre tais causas e o compartilhamento da visão com outras sociedades permitiam o refinamento da crítica e uma reflexão ainda mais profunda sobre esses problemas. Na música “Brasil” desse mesmo álbum, Cazuza desvela a degradação moral não apenas nas estruturas de poder, mas também do próprio cidadão, instigando um repensamento da própria realidade brasileira. No fragmento “Não me convidaram / Pra essa festa pobre / Que os homens armaram pra me convencer / A pagar sem ver / Toda essa droga / Que já vem malhada antes de eu nascer”, o vocabulário utilizado – “festa pobre” / “armaram pra me convencer” / “droga” / “malhada” – já denuncia a existência de esquemas inescrupulosos visando à manipulação dos interesses do povo dentro da estrutura política e social corrupta do país, que, de tão estabelecida, parece ser dada ou não-problematizada pela sociedade – “Toda essa droga/ Que já vem malhada antes de eu nascer”. Porém, em vez de naturalizar o processo de exclusão e demonstrar uma posição passiva diante dele, Cazuza incita a mobilização social: “Brasil / Mostra a tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim / Brasil / Qual é o teu negócio? / O nome do teu sócio? / Confia em mim”.

Na redescoberta do Brasil proposta pelo rock brasileiro dos anos 80, a desconstrução da imagem do país como cartão-postal e a ênfase nos seus principais problemas socioeconômicos cotidianos passam a ser temas ainda mais centrais. Isso fica explícito na letra de “Alagados”, de 1986, dos Paralamas do Sucesso. Focando o Rio de Janeiro, a letra da música desestabiliza a visão idealizada de “Cidade Maravilhosa” ao evidenciar não só a péssima infra-estrutura dos serviços públicos na vida cotidiana da população – “E a cidade / Que tem buracos abertos num cartão postal” –, mas a falta de oportunidades para uma maior e melhor inserção econômica dos cidadãos, tendo em vista, por exemplo, o agravamento do desemprego no Estado do Rio – que chegou a quase 7% da população economicamente ativa na década de 1980 –, o crescimento de subempregos e o aumento da mendicância e da prostituição – “Com os punhos fechados da vida real / Lhes nega oportunidades / Mostra a face dura do mal”. A ausência de “fontes de esperança” fora do país e nas propagandas da mídia – “A esperança não vem do mar / nem das antenas de TV” – não deve, contudo, fazer tal população desistir da luta, mesmo que as suas crenças tenham sido desiludidas ou perdidas –  “A arte de viver da fé / Só não se sabe fé de quê”. O sarcasmo típico do punk também compunha o diálogo com o rock nacional dos anos 80, e isso era visível nas letras do Ultraje a Rigor, que, na efervescência política do momento, buscava evidenciar as aspirações sociais por transformação. No contexto das Diretas Já, a ironia na letra de “Inútil”, de 1984, reproduzia os erros de português típicos da população brasileira pouco instruída – “A gente não sabemos tomar conta da gente” –, mas, ao mesmo tempo, evidenciava a ânsia dessa camada por uma atuação política mais notável e por liberdade para definir desde as atividades mais simples do cotidiano – “escovar os dente” – até as mais relevantes para a vida política da nação – “escolher presidente” – no contexto da redemocratização. A proposta de transformação e de redescoberta do Brasil fica evidente na denúncia da imagem tradicionalmente difundida do Brasil no nível internacional como um país periférico e subdesenvolvido – “Tem gringo pensando que nóis é indigente” – e na necessidade de engajamento e ação para transformar tal perspectiva.

A permanência de estruturas de dominação política após a redemocratização e sua consolidação com a realização das reformas liberalizantes ao longo da década de 80 eram denunciadas pelos Titãs em “Massacre”, em que a violência do aparato político – que lembrava a aplicada por regimes autoritários e repressores ao longo da história, como os nazifascistas – globalizava-se num contexto de difusão da interconexão entre as várias sociedades: “Massacre! / Massacre de uomo! / Matança! / Matança de donna! / Eu vi, eu vi, eu vi / En jornal nacionale / El Duce! / El Duce en Itália / El Führer! / El Führer en Germânia! / Brazil, Brazil, Brazil, / Aldeia Globale!”. O ódio categórico à figura de um poder político repressor repete-se em “Estado violência” – “Estado violência / Deixe-me em paz” –, e o redirecionamento da ação dessas instituições para conter os abusos de poder aparece em “Polícia” – “Polícia para quem precisa de polícia / Polícia para quem precisa”. Evidenciando a permanência de contradições no seio de uma sociedade recém-democrática, a denúncia de “Comida” voltava-se para a qualidade da democracia construída, que, mais do que prover os cidadãos dos benefícios necessários à sobrevivência, deveria também garantir a preservação de sua qualidade de vida – “A gente não quer só comida, / A gente quer comida, diversão e arte. / A gente não quer só comida, / A gente quer saída para qualquer parte”. A intercalação de doenças individuais e sociais em “O pulso” – “Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia / Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia / Brucelose, febre tifóide, arterioesclerose, miopia / Catapora, culpa, cárie, cãimbra, lepra, afasia / O pulso ainda pulsa / O corpo ainda é pouco” – evidenciava o aspecto doentio e “transmissível” da imoralidade e da degradação moral da sociedade.

Fora do eixo Rio-São Paulo, o Legião Urbana – banda de Brasília, capital do país – destacara-se, pois, a partir de seu local de enunciação – cidade tomada por elites políticas vistas como corruptas –, desenvolvia uma crítica à permanência de estruturas excludentes de poder domesticamente como à postura acrítica e alienada de grande parte da juventude em relação às influências externas. A banda liderada por Renato Russo propunha não a rejeição da interação com outras culturas, mas sim a não-assimilação passiva da cultura de massa dos grandes centros norte-atlânticos. A letra de “Geração Coca-Cola” – uma música produzida ainda nos anos 70, mas cujo sucesso fora atingido nos 80 – trazia um misto de crítica pesada contra a entrada maciça de enlatados culturais norte-americanos, a revolta com a postura agressiva da mídia na veiculação desses produtos e a criação de aparatos de dominação cultural pela grande potência: “Quando nascemos fomos programados / A receber o que vocês nos empurraram / Com os enlatados dos USA, de 9 às 6”. Na música, a resposta proposta era agressiva e bastante informada pela posição rebelde do punk no nível internacional – “Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês” –, e a ironia característica de tal cultura estava presente na referência à juventude alienada do processo político e submissa à cultura de massa difundida com a expansão do capitalismo global – “Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Nós somos o futuro da nação / Geração Coca-Cola”. Em “Que país é este”, não há segregação espacial para a “sujeira”: “Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo o lado / Ninguém respeita Constituição / Mas todos acreditam no futuro da nação”. A “sujeira” assume sentidos diferentes: na favela, implica degradação social, falta de condições dignas de vida; no Senado, degradação moral, falência dos princípios e corrupção. Logo após, evidencia-se o paradoxo: um país que não respeita suas leis, condições básicas para a manutenção da ordem e da estabilidade, acredita em melhorias de vida, num futuro melhor. Logo, eram necessárias a mobilização e a crítica social para a transformação desse quadro.

Considerações finais
Evidentemente, muitas obras e artistas não foram considerados na análise em face das limitações de tamanho neste panorama, mas, como sugestão para estudos futuros, fica a possibilidade de analisar as demais obras dos artistas citados, bem como considerar a redescoberta do Brasil na obra de artistas que obtiveram menos destaque na ocasião, como as bandas Ira ! – cujo nome era inclusive inspirado no Exercito Republicano Irlandês – e os Inocentes. Porém, procurei desenvolver que, numa perspectiva geral, a elaboração de narrativas e contranarrativas no cenário musical desvelou a dinâmica de definição espaço-temporal da cultura nacional. Nesse caso, o rock nacional viabilizou o diálogo com outras culturas e a desestabilização de tendências polarizantes que objetificam a diferença no nível internacional. Proporcionava, assim, respostas aos desafios da interação com a diversidade por meio da auto-reflexão crítica e da aliança entre críticas sociais culturalmente diversas.


Notas:

1 Exceções claras eram os artistas do Tropicalismo, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, que se mostravam bastante receptivos às influências externas. Return

2 A expressão “governança cultural” utilizada neste artigo refere-se a toda produção cultural que traduz corpos biológicos em corpos sociais, de forma a refletir projetos políticos específicos num determinado momento histórico. No caso em foco, ela remete especificamente à homogenização na formação da cultura nacional. Para uma discussão mais abrangente do termo, ver Shapiro (2004, p.44). Return

 

Referências bibliográficas:

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Colegrave, S.; Sullivan, C. (2001). Punk: the definitive record of a revolution. Da Capo Press.

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Shapiro, M. (2004). Methods and nations: cultural governance and the indigenous subject. Nova York, Routledge.

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Weber, C. (1995). Simulating Sovereignty: intervention, the State and symbolic exchange. Cambridge, Cambridge University Press.




Last updated December 30, 2010