Delaware Review of Latin American Studies
Issues
Vol. 11 No. 2  December 30, 2010


Uma obra meritória, humana e patriótica1: Faces do assistecialismo social na região carbonífera de Santa Catarina (1930-1950)

Ismael Gonçalves Alves
Universidade Federal do Paraná
Programa de Pós-Graduação em História
ismaelmaya1@yahoo.com.br


Resumo:
Neste artigo pretendo analisar as ações normalizadoras realizadas por um grupo de religiosas contratadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria – de Santa Catarina (Brasil), para trabalhar na assistência social aos trabalhadores mineiros da região carbonífera de Criciúma. Este grupo de religiosas fazia parte da Congregação Pequenas Irmãs da Divina Providência que se instalaram na cidade a pedido da prefeitura municipal e da companhia mineradora Carbonífera Próspera S.A., com o intuito de transformar trabalhadores sem grandes experiências urbano-industriais em um exímio conjuntos de mãos capazes de elevar a produtividade das minas de carvão.

Palavras-chaves: Pequenas Irmãs da Divina Providência; Assistência Social; Trabalhadores.

Abstract:
In this article I intend to analyze the action normalizing realized by a group of Nuns contracted by the SESI – INDUSTRY SOCIAL SERVICE – of Santa Catarina (Brazil) to function as social workers with coal miners of the Criciúma area. This group of Nuns belonged to the Congregation Little Sisters of Divine Providence that settled in the city as requested by the City Hall and Coal Company Próspera I.C., with the intention to turn workers without skills in the urban/industrial environment into a model community capable of raising the productivity of the coal mines.

Keywords: Little Sisters of Divine Providence; Social Welfare; workers

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Boas idéias não bastam se os responsáveis pelos nossos destinos, destinos das nossas criancinhas, destino de nossa raça, não despertarem do letargo em que estão imersos.
(Francisco de Paula Boa Nova Junior)

 




Este artigo busca discutir algumas das políticas públicas implementadas junto aos trabalhadores do carvão na região que compreende o complexo carbonífero no Estado Santa Catarina – Brasil. Encabeçadas em parte pelas empresas mineradoras e em parte pelo governo federal, estas ações buscavam instituir nas vilas operárias da cidade um conjunto de práticas que possuíam o objetivo tornar o operário que trabalhava nas minas de carvão de Criciúma eficiente e disciplinado no interior da fábrica e dentro espaço doméstico. Estas ações, diferentes da instituídas no século XIX e início do XX no campo do social no Brasil, podem ser descritas como políticas sociais. O termo política social popularizou-se, após a Segunda Guerra Mundial, sob o enfoque das políticas econômicas Keynesiana e do New Deal introduzidas nos países europeus e da América do Norte.2 As políticas sociais caracterizam-se pela planificação das ações, pela demanda de recursos financeiros e objetivam atingir determinados setores da população. As políticas sociais que serão investigadas neste artigo possuem caráter assistencial, ou seja, estas ações operaram, sobretudo, no âmbito da reprodução da classe social. Ao instituir políticas públicas para determinados setores da população, tanto o Estado quanto empresariado brasileiro, buscavam diminuir as crescentes pressões do operariado e dos sindicatos por melhores salários e condições de vida. As políticas assistências possuíam o claro objetivo de garantir a manutenção de uma força de trabalho sadia e disciplinada “ao implementar políticas públicas urbanas [...] o Estado não estaria beneficiando a classe trabalhadora, mas garantindo a reprodução da força de trabalho e os processos de acumulação”.3

Identificados como os focos disseminadores de doenças endêmicas, as camadas pobres urbanas e as vilas operárias de diversas regiões do Brasil, acabaram por tornar-se alvo preferencial do saber médico-sanitarista desde as primeiras décadas do século XX. Em nome da manutenção de um país ordeiro, disciplinado e capaz de elevar ao máximo seu potencial produtivo, o Estado brasileiro utilizou-se de uma série de mecanismos coercitivos – a força policial, poder sanitário e o aparato médico – com a finalidade de garantir o bom desenvolvimento da nação.

Sob a alegação de que estavam em jogo interesses do conjunto da Nação, o Estado brasileiro [...] não agia com sutileza disciplinadora para garantir a ordem pública. Ao contrário, os donos do poder não hesitaram em valer-se, até a náusea, da violência física para imobilizar os indesejáveis4.

Segundo Michel Foucault, desde o final do século XVIII esboçava-se em boa parte dos Estados europeus uma tecnologia da população no qual se buscava tornar a pobreza útil e manipulável, ou seja, aliviar ao máximo possível seu fardo para a sociedade e ao mesmo tempo diminuir o seu impacto sobre a economia, “como fazer trabalhar os pobres válidos, [e] como transformá-lo em mão-de-obra útil”.5 Neste movimento de decomposição utilitária da pobreza, Michel Foucault, chama atenção para atuação da corporação médica que assumiu diversos postos na administração pública organizando aquilo que o autor chama de noso-política – formação e acúmulo de saber, métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de investigação6 – nas quais as características biológicas se tornam elementos centrais na gestão econômica da população tornando-as ao mesmo tempo submissas e utilizáveis.

No constante processo medicalização da sociedade instituído na passagem do século XVIII para o XIX em alguns países do continente europeu, a figura do médico tornou-se central para a manutenção de um Estado forte e poderoso. Para Michel Foucault, a evolução do controle estatal sobre a população, no que diz respeito à saúde e ao bem-estar, se deu através da medicina moderna, ou seja, a construção de um saber sobre o indivíduo como biológico e, uma consciência da doença como problema político e médico com profundos impactos sobre a organização do Estado. Para esta “nova” medicina, desenvolvida nos Estados modernos, não importava apenas saber quais as doenças faziam o maior número de indivíduos morrerem, lesionando a nação, importava para ela, saber do que estas pessoas não morreriam mais, através da construção se um saber sobre o homem saudável, do homem não doente, idealizando os indivíduos através de uma espécie modelo.7 Neste contexto de apreensão do indivíduo pela medicina, a família passou por um ininterrupto processo de aculturação sanitária, o seu papel deixava de ser apenas o transmitir bens materiais e fortunas pessoais, sua função a partir deste momento passa a ser essencialmente instrumental, instância primeira e imediata da medicalização dos indivíduos, garantindo o pleno desenvolvimento de sua prole em beneficio do Estado.

A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens. Deve-se tornar um meio físico denso, saturado, permanente, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança. Adquire, então, uma figura material, organiza-se como o meio mais próximo da criança; tende a se tornar, para ela, um espaço imediato de sobrevivência e de evolução.8

Inculcar novos valores sanitários, sociais e morais sob a família das camadas populares, passou a ser um imperativo político para o bom desenvolvimento da nação. Em Santa Catarina, o trabalho assistencial junto as famílias mineiras, envolveu diversos atores social, dos quais podemos destacar os institutos religiosos e o Serviço Social da Indústria – SESI,. Segundo as analises foucaultinas, nesta grande empreitada o Estado não foi o único pólo irradiador de noso-políticas; as instituições filantrópicas, de caridade e de benemerência também se incumbiram dos problemas médicos da população:

Economicamente, esta medicina-serviço estava essencialmente assegurada por fundações de caridade. Institucionalmente, ela era exercida dentro dos limites de organizações (leigas ou religiosas) que se propunham fins múltiplos: distribuição de víveres, vestuário, recolhimento de crianças abandonadas, educação elementar e proselitismo moral, abertura de ateliês e de oficinas, eventualmente vigilância e sanções de elementos "instáveis" ou "perturbadores" (as repartições hospitalares tinham, nas cidades, jurisdição sobre os vagabundos e os mendigos; as repartições paroquiais e as sociedades de caridade se outorgavam também, e muito explicitamente, o direito de denunciar os "maus elementos").9

Em Criciúma verificamos este mesmo movimento. Segundo os médicos sanitaristas, era necessário modificar o que se passava no interior da família operária introduzindo valores e práticas da norma familiar burguesa. Esta “árdua tarefa”, no caso da vila operária Próspera, na década de 1950, ficou a cargo das Pequenas Irmãs da Divina Providência. A adoção políticas assistenciais e a difusão da norma familiar burguesa para os homens, mulheres e crianças são processos antagônicos no se refere aos objetivos das ações. A historiadora Silvia Maria Fávero Arend comenta sobre esta questão:

Na capital catarinense, nos anos de 1930, as ações assistencialistas desenvolviam se de forma concomitante aos investimentos relativos à gestão da população que preconizavam a difusão da norma familiar burguesa para os trabalhadores. De maneira geral, a historiografia brasileira que versa sobre o tema da introdução da norma familiar burguesa nos grupos populares urbanos no período republicano não menciona a existência das políticas sociais consideradas assistencialistas. Mesmo estudos “clássicos” sobre a Era Vargas, como a obra de Alcir Lenharo, a “Sacralização da Política”, não abordam as duas temáticas de forma complementar. (...) Para o historiador social da família é de suma importância a percepção desses dois movimentos presentes na sociedade brasileira, ao longo do século XX, que têm em comum o objetivo de conservar o corpo-espécie. Todavia, os mesmos agem em direções contrárias, ou seja, as ações assistencialistas visam à reprodução de classe enquanto que os investimentos na normalização vislumbram a ascensão social dos pobres.10

Portadoras da civilidade, as religiosas acreditavam ter como missão adequar estes indivíduos ao novo mundo urbano-industrial que se descortinava na região. Para dar conta de tal tarefa as Irmãs direcionaram o seu trabalho para dois membros da família: a mulher e a criança, difundindo o estereótipo da mulher-mãe-esposa-dona-de-casa e da infância sagrada.

O desenvolvimento da região carbonífera do Estado Santa Catarina esteve diretamente atrelado ao período que compreendeu a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Nesta época o acesso brasileiro ao carvão produzido na Inglaterra e nos Estados Unidos, foi dificultado, pois estes países reservaram para si a utilização desta matriz energética. Por este motivo o Governo Federal brasileiro, voltou sua atenção para a exploração das reservas carboníferas existentes nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande o Sul, até então pouco exploradas.

Em Santa Catarina, as atividades carboníferas desenvolveram-se, sobretudo no território que compreende extremo sul do Estado, na área em que abrangia os municípios de Criciúma, Içara, Urussanga, Nova Veneza e Siderópolis, que na sua totalidade dedicaram-se quase que exclusivamente a exploração do carvão mineral existentes em suas jazidas. Somente a partir da década de 1940, ainda sobre “benesses” do desenvolvimentismo varguista11, foi que as atividades carvoeiras da região desenvolveram-se com maior fôlego, pois com a construção da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional – em Volta Redonda optou-se pelo consumo do carvão nacional para o abastecimento de seus altos fornos.

Outro marco importante para o desenvolvimento das atividades mineradoras foi aprovação no Estado da lei 1.886(12) sancionada por Getúlio Vargas em 1953, criando Plano do Carvão Nacional que previa uma série de medidas financeiras com o intuito de viabilizar o desenvolvimento econômico do complexo carbonífero sul. O Estado de Santa Catarina foi extremamente beneficiado, pois na respectiva lei previa-se de que todo o carvão produzido na região seria consumido pelo próprio Estado brasileiro. Para facilitar o acesso a tal fonte de energia o governo federal comprometia-se a disponibilizar ao Estado uma extensa malha de infra-estrutura (ferrovia, portos, siderúrgicas, termoelétricas, etc.) capaz de absorver e transportar todo o carvão produzido em seu complexo carvoeiro.

Neste contexto de emergência das atividades carboníferas, um contingente expressivo de pessoas foi seduzido pela oferta de emprego existente na região, deslocando-se das cidades vizinhas, tais como, Laguna, Imbituba, Tubarão e Araranguá, para as áreas de mineração. Criciúma por seu significativo complexo industrial recebeu o número maior de migrantes que viam no carvão a promessa de um mundo novo e cheio de vantagens, que somente a indústria era capaz de fomentar. Este fascínio causado pelo modo de vida urbano acabou atraindo também boa parte da mão-de-obra camponesa da cidade, ocasionando o abandono de toda a região agrícola em detrimento da área industrial, pois o mundo urbano aparentava ser mais “vantajoso” e “sedutor” que rural.

Sem um plano diretor adequado a sua nova realidade, o município de Criciúma não estava preparado para comportar todo o contingente de pessoas atraídas pela oferta de emprego. A administração local deixava isto a cargo das próprias carboníferas que de forma precária obedeciam ao código de minas de 1940(13), onde ficava estabelecido que as carboníferas seriam responsáveis pela construção de moradias populares para seus operários. Desta forma nos arredores das empresas mineradoras desenvolveu-se um expressivo “aparato habitacional” a fim de garantir a fixação da mão-de-obra no entorno das minas de carvão, as chamadas Vilas Operárias Mineiras.

As vila operárias surgiram em diversas cidades do país com a finalidade substituir as antigas moradias anti-higiênicas que compunham a paisagem dos centros industrias do Brasil. Amontoadas umas sobre as outras, pequenas, mal ventiladas e iluminadas, elas foram responsabilizadas pela elite industrial como foco difusor de doenças infecto-contagiosas que constantemente colocava em risco as atividades industriais. Segundo Margareth Rago, em São Paulo os bairro periféricos – onde se amontoavam as classes trabalhadoras – eram vistos pela burguesia local como uma ameaça constante a ordem instalada, e por isso deveriam ser rapidamente suprimidas em favor de um bairro higiênico, racionalmente calculado pela medicina sanitarista.

Na medida em que a casa “imunda e insalubre” do pobre a apresentada, como a origem da doença, da degradação moral e da ameaça política, eliminam-se os obstáculos ideológicos que poderiam se antepor ao desalojamento dos trabalhadores dos cortiços e favelas. Todo um discurso racionalizador procura justificar a interferência planejada da burguesia nos mínimos detalhes da vida cotidiana do trabalhador, instaurando uma disciplina designa novos modos de higiene pessoal e de vida.14

Assim como em outras partes do país, paulatinamente a cidade de Criciúma foi se tornando, para elites locais, em um complexo problema “médico-sanitário-social” – falta de saneamento, água tratada, serviços hospitalares, escassez de alimentos, altos índices de mortalidade, etc. – que deveriam ser sanados o mais rápido possível. O desabastecimento de gêneros alimentícios na cidade – foi um exemplo desses problemas que requereriam especial atenção dos administradores locais, pois onerava consideravelmente os já parcos rendimentos operários.

Criciúma industrializou-se, tornou-se centro mineiro por excelência [...] campos e rebanhos foram abandonados todos os braços válidos empregados na faina mais remuneradora e certa da extração de carvão. Todos os gêneros alimentícios tiveram que vir de longe, – carne e leite – principalmente e seus preços ficaram proibitivos aos salários então compensadores dos mineiros.15

Outra questão que se tornou freqüente no quadro de problemas da cidade, eram os constantes surtos de doenças infecto-contagiosas que em determinadas épocas do ano tornavam-se responsáveis por um expressivo número de mortes entre adultos e, principalmente de crianças. Estas enfermidades segundo o médico-sanitarista do Departamento Nacional de Produção Mineral, Francisco de Paula Boa Nova Junior era resultado dos aspectos climáticos regionais, que juntamente com as questões sanitárias, associadas à falta de recolhimento do esgoto e água tratada, tornavam-se vetores de contaminação da população mais pobre. Doenças como a varíola, varicela, difteria, desinteiras e principalmente o tifo tornaram-se rotineiras na cidade como se pode perceber no boletim número 95 entregue pelo médico-sanitarista ao DNPM:

Durante as quatro estações do ano ocorriam casos de tifo em Criciúma, mas o recrudescimento da endemia coincidia quase sempre com a entrada do verão, ou seja, a época em que as chuvas, mais freqüentes, determinavam, ao se escoarem para os cursos dágua, a poluição dêstes, ao arrastarem para êles dejeções expostas de portadores de bacilos, e ainda pelo fato, comum à região, de se situarem os poços dágua utilizada para alimentação nas proximidades de fossas de dejeções, de construções precárias.16

Na tentativa de controlar a saúde das camadas mais pobres as elites da cidade iniciaram uma “cruzada” na tentativa de reordenar a vida do trabalhador mineiro, pois as doenças surgidas nas periferias logo se expandiriam por toda a cidade, atingindo-os também em suas distantes e confortáveis moradias.  Segundo Gilberto Hochman as doenças contagiosas no Brasil criaram uma relação de interdependência17 entre os grupos sociais. As elites possuíam a consciência de que as condições sanitárias precárias das populações pobres poderiam transformar-se também em um perigo para a existência do seu próprio círculo de atividades. Neste sentido criou-se no país uma série de medidas que tentavam amenizar ou até mesmo eliminar os efeitos negativos desta interdependência, como a ampliação da rede de saúde, um sistema eficaz de vigilância sanitária, a reurbanização das cidades e a destruição dos cortiços e o deslocamento das camadas pobres urbanas para as longínquas periferias da cidade. Desta forma percebe-se que o intuito dos grandes industriais brasileiros – seguindo a lógica do mundo capitalista – não era apenas melhorar ambiente de vida do trabalhador, mas também, excluir a massa proletária do circulo de atividades burguesas, erguendo fora do perímetro urbano das cidades e próximo as unidades de produção, as vilas operárias destinadas aos trabalhadores industriais. Em São Paulo, as novas vilas operárias tinham a função de fixar os trabalhadores nos arredores da fábrica e, proporcionar uma série de equipamentos coletivos – água, luz, escolas, postos de saúde, mercados e quadras de esportes – que coibissem a circulação das camadas pobres urbanas pelos infinitos cantos da cidade, pois todas as suas necessidades, das mais básicas as mais complexas, deveriam ser supridas ali mesmo.

A vila cidadela projetada pela arquitetura da vigilância oferece aos seus moradores a proteção e o conforto de toda uma rede de equipamentos coletivos e comerciais, capazes de atender às suas simples necessidades: escola, armazém, bar e restaurante, teatro e quadra de esportes entre outras coisas, nesse sentido, o poder disciplinar cria dispositivos estratégicos de estreitamento dos vínculos que unem os membros da família, mas também entre esta e o patrão, numa mescla de sentimentos que incluem gratidão e cumplicidade.18

Visando barrar o crescimento dos problemas sociais existentes no complexo carbonífero sul, o Plano do Carvão Nacional destinou verbas no total de 30 milhões de Cruzeiros, sendo que em 1953 foram liberados 15 milhões para a assistência social aos trabalhadores da indústria carvoeira. Mas esta quantia não seria suficiente para garantir melhorias necessárias e amenizar a situação precária em que viviam as populações mineiras da região, pois a verba supracitada teria que ser dividida entre os três Estados do sul do país, ficando Santa Catarina com um terço do total, sendo que seu parque industrial chegava a contar com mais cinco mil mineiros em suas frentes de trabalho.

Sem a constituição de um Estado de Bem-Estar Social no país; ficou a cargo dos próprios industriais, das sociedades de assistência e dos filantropos sanar boa parte das “necessidades” das camadas populares. Assim tentava-se criar em torno destas populações uma estreita malha de “benefícios sociais”, garantindo assim que todos os males que delas emanassem ficassem ali restringidos.

Criciúma não difere de outras regiões do país, onde a Medicina ganhava status de polícia social. Francisco de Paula Boa Nova Junior, médico sanitarista, foi o responsável por uma intensa análise sobre os aspectos sociais da cidade, apontando, sob as mais diversas formas, os “males” existentes no município, e fornecendo as informações necessárias para criação de um plano de ampla envergadura capaz de agir diretamente na vida cotidiana do trabalhador mineiro. Com estas intervenções as empresas mineradoras desejavam produzir trabalhadores capazes de atender as necessidades do complexo carbonífero. As aptidões esperadas desses trabalhadores iam aquém das competências físicas, “transbordando” sobre o mundo da moral, como é possível perceber em um trecho do relatório produzido pelo médico-sanitarista:

[...] não nos parece difícil a execução perfeita e integral do programa assistencial e, assim o fazendo, estaremos contribuindo decididamente para a realização de uma obra meritória, humana e patriótica, que culminará com a desejada formação de uma verdadeira elite operária, sem problemas e sem reivindicações, bem educada, bem evoluída, bem formada e perfeitamente sadia de corpo e de espírito.19

O referido relatório analisa os aspectos sociais de toda a região carbonífera da cidade, dedicando em certa medida atenção especial a Vila Operária Próspera, o mais populoso bairro de Criciúma. Esta Vila Operária tornou-se um exemplo do grande problema social em que se tornaram os bairros periféricos, uma vez sem experiências relativas ao mundo urbano.  Os operários das minas acabavam por tornar-se um empecilho para o próprio desenvolvimento das atividades industriais e por isso teriam suas práticas readequadas. Identificados os possíveis “problemas” a Carbonífera Próspera S.A., já sob a administração da Companhia Siderúrgica Nacional, que adquiriu a mineradora em 1953, iniciaria uma série de atividades na tentativa de enquadrar seus operários segundo os padrões de moralidade vigentes na época.

Para que esta empreitada se concretizasse, era preciso transformar aquela massa de trabalhadores considerados preguiçosos e “moralmente viciados” em uma elite operária aplicando sobre eles regras e valores relacionados à moral burguesa. Segundo a socióloga Martine Segalen, na sociedade industrial os valores e práticas da família nuclear burguesa tornaram-se barômetros da moralidade, e as práticas que dela se afastassem acabariam sendo consideradas desviantes e passiveis de normalização.20 Neste sentido, diversas instituições uniram-se na tentativa de reestruturar a vida do operário à sombra da família nuclear burguesa, tutelando suas práticas e instituindo normas de acordo com a moral dominante.

A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. [...] Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma “ordem”.21

Para implementar essas ações assistencialistas, o Serviço Social da Indústria – SESI em parceria com a empresa mineradora, contratou o grupo de religiosas pertencentes a Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência. De acordo com o contrato estabelecido entres ambas instituições; o SESI se responsabilizaria pelo aperfeiçoamento técnico das religiosas, enquanto a Carbonífera arcaria com todas as despesas para a implementação das atividades assistências junto as famílias mineiras. Em uma localidade onde a maioria dos habitantes professava a fé católica, nada mais propício, que uma ordem religiosa para intervir diretamente no cotidiano dos trabalhadores sem que com isso os moradores se sentissem coagidos.

Para entender as ações desta Congregação, é preciso compreender a sua relação com o Serviço Social da Indústria e o papel que esta instituição desempenhou no Estado de Santa Catarina. Em 1948 o SESI nacional, em parceria com a prefeitura municipal de Criciúma e a Carbonífera Próspera, realizaram uma série de pesquisas visando alojar na cidade uma unidade comercial de serviços alimentícios, que forneceria para as famílias carentes produtos de primeira necessidade a preços acessíveis. Executada a primeira parte do projeto “os resultados da pesquisa foram encaminhados ao SESI Nacional [...] Vinte dias após chegaram à cidade viaturas da rede de abastecimento do SESI que, assim, iniciava suas atividades sob os auspícios do SESI nacional, já que o Regional inexistia”.22

O Departamento Regional do SESI em Santa Catarina foi criado apenas em março de 1952, sob a direção de Celso Ramos. Segundo a Revista Paulista de Indústria de setembro de 1954, o Departamento de Santa Catarina empenhou-se pouco nos serviços burocráticos dedicando-se totalmente ao assistencialismo.

Pouco a pouco se forma em torno disto tudo um discurso, o da filantropia, o discurso da moralização da classe operária. Depois, as experiências se generalizam, graças a uma rede de instituições, de sociedades que propõem, conscientemente, programas de moralização da classe operária.23

Com estas atividades buscava-se alterar realidade das regiões operárias catarinenses, não sendo então possível adotar um plano único de ação para todo o Estado.24 Era preciso desenvolver o parque industrial catarinense que há muito tempo era coadjuvante da economia dos Estados Paraná e Rio Grande do Sul. Para dar cabo destas transformações e garantir o crescimento econômico de Santa Catarina era necessário “investir” diretamente na mão-de-obra local e, no caso de Criciúma ainda adaptá-las à vivência na urbe.

As Pequenas Irmãs da Divina Providência instalaram-se na Vila Operária Próspera em 1955 em uma casa cedida pela própria carbonífera. A chegada das religiosas na localidade representou a edificação de um “novo período” para a população local. Recém instaladas na localidade as Irmãs de caridade desenvolveram uma série de atividades que visavam transformar o lar mineiro num local propício para o desenvolvimento de relações saudáveis no interior do espaço doméstico, já que para os mineradores as famílias operárias eram portadoras de uma moral duvidosa.

O plano assistencialista desenvolvido na região se efetuou de forma complexa, buscando de todas as maneiras estar presente na vida cotidiana do trabalhador, garantindo-lhes acesso a múltiplos serviços como: mercearia, farmácia, teatro, esportes, etc. O acesso a estas “facilidades” causava a sensação de amparo, e garantia que esta mão-de-obra não se deslocasse da Vila para satisfazer suas necessidades cotidianas, ficando sempre que possível circunscritas aos arredores da cidade.

Daí a preocupação de uma equipe de homens devotados à solução do grandioso problema de uma verdadeira assistência social, que abranja desde a gestante, à criança, ao operário enfermo e aos que, alquebrados e sem qualquer recursos, depois de uma existência nas entranhas da terra á cata do carvão, se vêm a braços com a miséria, resolveram organizar um plano de efetiva assistência a região carbonífera.25

Outra preocupação corrente na cidade e veiculada pela imprensa local era o alarmante índice de mortalidade infantil e, nesse sentido era necessário criar um plano de proteção a infância, que diminuísse consideravelmente o numero de óbitos entre a populcao infantil. Várias foram as ações desenvolvidas pelas religiosas para garantir o bom desenvolvimento deste estágio da vida. Em um local onde predominava a extração do carvão mineral e os rejeitos do combustível eram descartados nos arredores das próprias vilas operárias, colocando em risco a vida dos indivíduos que ali residiam, a saúde e o asseio corporal das crianças, ao que me parece, foram um dos palcos centrais da atuação destas religiosas.

Para que a criança obtivesse um desenvolvimento saudável, toda a sua família deveria ser envolvida em sua criação e, para dar conta de tal empreitada a casa foi o primeiro local de interferência das religiosas, já que um ambiente doméstico onde imperava a sujeira só tendia a agravar a frágil saúde dos infantes. Neste sentido o depoimento da Irmã C. F. é revelador, “quando nós chegamos à sujeira tomava conta das casas [...] predominava muita desordem, foi por isso que começamos a falar de higiene, do valor da higiene, do banho, do asseio das crianças”.26

Ao problema "das crianças" (quer dizer de seu número no nascimento e da relação natalidade − mortalidade) se acrescenta o da "infância" (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta sobrevivência, dos investimentos necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil, em suma, da organização desta "fase" que é entendida como especifica e finalizada). Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças, mas de gerir convenientemente esta época da vida.27

A casa operária, assim como a própria vila, era vista como um local insalubre propício à disseminação de doenças, os aconselhamentos das Irmãs partiam no sentido de manter a casa em ordem e acima de tudo limpa e bem asseada, a fim de expurgar todos os males que delas derivavam. A higiene da habitação garantia que dois membros do grupo familiar fossem beneficiados, em primeiro lugar o operário, que após sua jornada de trabalho encontraria um ambiente sadio favorável a “reposição” de energias, em segundo lugar, garantia que a criança convivesse com os outros membros de seu grupo familiar em uma atmosfera agradável, fornecendo condições as mínimas para o seu pleno desenvolvimento. O local de habitação das famílias mineiras segundo a Irmã C. F., apresentava-se da seguinte forma: “as casas eram todas de madeira preta, tudo era preto, mesmo as crianças brancas ficavam pretas, por que era muito carvão [...] dava a impressão de que se faziam quatro paus fincados e punham as casas em cima”.28

Vista parcial da Vila Operária Próspera
Figura 01: Vista parcial da Vila Operária Próspera– Criciúma/SC  (década de 1950).
Fonte:Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC. Acervo Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação – GRUPEHME.

O alto índice de mortalidade infantil como visto anteriormente, segundo o relatório do médico sanitarista Boa Nova Junior, era uma junção de fatores climáticos e sociais; a falta de preparo das mães e o ambiente insalubre onde residiam estas famílias eram atacados com veemência pelo médico que apontava como principais causas da mortalidade infantil:

[...] as doenças gastro-intestinais (salmonelose e disenterias amebiana e bacilar, entre as mais freqüentes), doenças do aparelho respiratório (pneumonia e broncopneumonia, bronquite capilar, crupe, coqueluche e gripe), doenças infesto-contagiosas em geral, e, principalmente a sub-nutrição! 29

A mortalidade infantil na região variava entre 80,3 a 133,0 mortes por mil nascimentos, segundo o jornal Tribuna Criciumense de maio de 1957, no ano de 1950 de acordo com I.B.G.E. , a mortalidade infantil teve coeficiente 106 no Distrito Federal, 107 em Porto Alegre, 110 em Belém do Pará, 162 em Salvador.30 Na vila operária Próspera a situação na se apresentava de forma diferente como rela Irmã C. F, “no começo quando a gente estava lá em casa [residência das freiras], via-se passar caixõeszinhos , caixõeszinhos, caixõeszinhos [...]”.31  Zelar por essa criança em “risco” dependia em grande parte do empenho dos pais, mas principalmente da mãe e, para instrumentalizá-las as Irmãs criaram uma série de cursos,  entre os quais o curso de enfermagem do lar, que tinha como objetivo dar condições mínimas de atendimento doméstico a uma criança doente, já que os profissionais de saúde na cidade eram poucos e o atendimento gratuito era mínimo. “Este foi um resgate bem grande que nós fizemos, [...] ensinávamos a cuidar da saúde, a cuidar da alimentação, a cuidar da higiene”.32

Serviços de puericultura
Figura 02: Serviços de puericultura realizado pelas Pequenas Irmãs da Divina Providência. – Criciúma/SC (década de 1950).
Fonte: Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC. Acervo Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação – GRUPEHME.

No Brasil, assim como em outras partes do mundo o discurso sobre a higiene infantil propagou-se entre os diversos grupos sociais. Segundo a historiadora Ana Paula Vosne Martins, as mulheres das classes abastadas e letradas foram as primeiras a receberem conselhos e orientações médicas sobre a saúde física a moral de seus filhos; após conquistar esta camada da população, a puericultura espraiou-se na direção das mulheres pobres urbanas, ditando-lhes normas e valores sobre os cuidados infantis.33 Ao identificar a criança como elemento chave na construção de uma nação poderosa, os médicos atribuíram às mães a responsabilidade pelo bom desenvolvimento da infância, divulgando entre elas ensinamentos relativos à dietética, à higiene e os cuidados elementares para a manutenção deste estágio da vida. Ao adentrar no cotidiano das famílias brasileiras a puericultura passou a ocupar lugar de destaque na manutenção racional deste período tão “crítico” do desenvolvimento humano.

Dar a luz a um filho, amamentá-lo, cuidar dele e banhá-lo passaram a ser ações que deveriam ser dirigidas por regras e sustentadas pelo saber médico. O discurso médico intervinha e racionalizava práticas que antes ficavam por conta do conhecimento tradicional das parteiras, nutrizes, aias e comadres.34

Para o saber puericultor saúde da criança deveria ser alvo principal da atenção das mães; e para preservar este período tão sensível da vida vários elementos do cotidiano familiar deveriam ser racionalmente calculados, no intuito de contribuir com desabrochar de tão frágil criatura.

[...] doravante, por todo um conjunto de obrigações que se impõe tanto aos pais quanto aos filhos: obrigações de ordem física (cuidados, contatos, higiene, limpeza, proximidade atenta); amamentação das crianças pelas mães; preocupação com um vestuário sadio; exercícios físicos para assegurar o bom desenvolvimento do organismo: corpo a corpo permanente e coercitivo entre os adultos e as crianças.35

Manter as crianças sempre higienizadas eram obrigações maternas, assim como estar sempre atenta ao menor sinal de problema. Ensinava-se as mães a importância do cuidado com a água que era usada para fazer comida as crianças bem como aquela utilizada no banho, pois na região, ela era apontada com grande transmissora de verminoses, que culminava com o óbito das crianças. Segundo o discurso médico, os arredores da moradia deveriam estar sempre bem cuidados e de preferência sem animais domésticos, pois era costume na região criar porcos, galinhas e cabras junto da família e, e este convívio “desregulamentado” entre humanos e animais de acordo o sanitaristas Francisco de Paula Boa Nova Junior, acabava por disseminar uma ampla gama de verminoses entre a população da cidade e atingindo em especialmente crianças.36

Criança brincando com animais
Figura 03: Criança brincando com animais – Criciúma/SC (década de 1950).
Fonte: Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC. Acervo Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação – GRUPEHME. 

No curso de enfermagem caseira as mães aprendiam a administrar medicamentos, a fazer curativos, detectar algumas doenças e até mesmo aplicar injetáveis. Alguns os produtos de primeiros socorros eram fornecidos pelas próprias Irmãs e outros comprados pelas mães que eram incentivadas sempre a tê-los sempre em casa. Convenientemente para suprir as necessidades farmacológicas da Vila Operária as Irmãs abriram o seu próprio dispensável de medicamentos, capaz de suprir a demanda da vila.

O banho diário era outro item importante das ações normativas das Irmãs, ensinava-se a mãe de recém-nascidos a maneira correta de lavar o bebê, a cabeça, as orelhas, os órgão genitais e principalmente o umbigo, uma parte extremamente delicada da criança nos primeiros meses de vida e a mais suscetível a infecções oportunistas: “[...] a gente tinha muito cuidado de mostrar a mãe, como é que dava banho, como é que fazia o curativo [...] por que senão elas punham tudo o quanto há naquele umbigo”.37 O asseio com as crianças maiores também era alvo de preocupação, percebendo a falta da higiene com as mesmas, as Irmãs incentivaram o banho e a troca diária de roupas. Não satisfeitas com a atuação das mães, talvez por que a Vila possuía apenas uma torneira de água em sua parte central, as Irmãs solicitaram a mineradora que instalasse dois banheiros públicos para que todos os sábados as crianças tomassem um banho “geral”:

Então todos os sábados nós dávamos banho nas crianças, os menorezinhos lavávamos em grupo. E os maiores a gente, por respeito a eles, ensinava como se lavar quando estávamos dando nos pequenos, a gente mostrava como se lavava as orelhas direitinho, lavava bem atrás das orelhas e o nariz também.38

A intervenção no cotidiano familiar também se dava de maneira direta, visitas domiciliares às mães de crianças pequenas eram rotineiras, nestas “inspeções” o trabalho se dava de maneira prática,

[...] para ensinar não adianta só falar, tudo o que a gente ensinava, naturalmente a gente fazia, ensinava a dar banho no nenê, a gente ia lá, batia..., ensinava a passar um fogo na bacia primeiro, por que a bacia era para todo mundo, você não vai dar banho na criança onde o adulto lavou o pé, tomou banho!39

A nutrição infantil como demonstrado anteriormente era causa de uma boa parcela das mortes entre as crianças, neste sentindo, a fim de mitigar seus impactos, as religiosas desenvolveram o curso de arte culinária que tentava aprimorar os conhecimentos das mulheres na cozinha. Neste curso as mulheres aprendiam à preparar adequadamente os alimentos sem desperdiçá-los garantindo a boa alimentação de todos os membros do grupo familiar, mas principalmente a criança que bem nutrida estaria menos propícia a contrair doenças. Além do valor nutritivo a alimentação era ensinado as mães e esposas a manusear corretamente os alimentos a fim de evitar a contaminação do que seria servido ao seu marido e filhos.

Curso de Arte Culinária
Figura 04: Curso de Arte Culinária – Criciúma/SC (década de 1950).
Fonte: Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC. Acervo Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação – GRUPEHME. 

Outra atividade desenvolvida com as mulheres foi o concurso de bebê robusto, talvez uma maneira de perceber se seus ensinamentos ensinados por elas estavam sendo seguidos corretamente, este concurso acontecia anualmente no intuito de “incentivar” as mães a cuidarem de seus filhos, zelando pelo seu pleno desenvolvimento, pois nesta lógica seriam premiadas as mães que tivessem os bebês mais vigorosos, aqueles para qual foram  dispensados os “maiores” cuidados com sua alimentação e saúde e, aparentado melhores condições físicas. De acordo com esta atividade seriam reconhecidas aquelas mulheres que maior empenho desprendessem aos seus filhos, pois o bebê robusto traduzia-se em um modelo de “bom desenvolvimento”, o melhor exemplo de infância sadia, o perfeito arquétipo de saúde física. O concurso de robustez infantil se aproximava do sistema de gratificação-sanção analisado por Michel Foucault. A gratificação-sanção torna operante todo o processo de treinamento e correção, fazendo que toda a conduta fosse distribuída entre dois pólos extremos, um positivo e outro negativo, esta funciona como uma estratégia de normalização. Tornando mais freqüentes as gratificações do que as sanções, a disciplina procura destacar os bons comportamentos através de recompensas, tornando-os modelos para os demais.40

Concurso do bebê robusto
Figura 05: Concurso do bebê robusto – Criciúma/SC (década de 1950).
Fonte: Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC. Acervo Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação – GRUPEHME. 

A lógica deste concurso seguia o imperativo da obediência-premiação, assim somente as mães que seguissem a risca os ensinamentos de saúde, higiene e nutrição com relação a seus filhos alcançariam o modelo ideal de criança e, por isso seriam premiadas. As que não o fizessem, a reprovação pública serviria como punição e exemplo às demais mães.

Neste sentido percebe-se o profundo afinco da Ordem religiosa em mudar os comportamentos existentes entre os moradores da Vila Operária, pois para elas a mudança comportamental iniciaria em casa. O mundo citadino apesar de todos os benefícios que ofertava, não mostrou-se tão receptivo aos migrantes provindos das regiões litorâneas. Assim, uma ampla rede assistencialista e normalizadora foi criada entorno dessas populações a fim de transformá-los em exímios trabalhadores, dedicados a produção industrial e, empenhados no cultivo de um corpo sadio. Nesta lógica a criança apareceu como um investimento de todo o corpo social que depositou sobre ela a responsabilidade de erguer um país civilizado e desenvolvido. E para dar cabo de tão árdua tarefa, entorno da infância então gerou-se uma série de mecanismos que garantiriam sua sobrevivência até a vida adulta, e a partir daí estariam prontos para realizarem a tarefa da qual foram incumbidos.

Criciúma, seguindo uma lógica desenvolvimentista e carregando o titulo de capital do carvão, modelo de desenvolvimento para toda a região sul de Santa Catarina, não poderia carregar o fardo de capital do descaso social e da mortalidade infantil, a cidade precisou de um amplo plano de assistência a seus moradores, e a Vila Operária Próspera através das ações normalizadoras das pequenas Irmãs da Divina Providência foi um exemplo da intervenção direta na vida dos operários pelas elites locais, no intuito de garantir a existência de uma infância sadia, com potencial de crescimento capaz de dar continuidade as atividades extratoras do carvão transformando a cidade em um exemplo econômico e social para todo o país.  

 

1 JUNIOR, Francisco de Paula Boa Nova. Problemas médicos –sociais da indústria carbonífera sul catarinense. Boletim No 95. Rio de Janeiro: DNPM, 1953. p. 04. Return

2 VASSEUR, Paul. Protection de l’enfance et cohésion sociale du IVe au XXe siècle. Paris: L’Harmattan, 1999. p. 248. Return

3 MARQUES, Eduardo Cesar. Redes sociais, instituições e atores políticos no governo da cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003. p. 35. Return

4 PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. In: Estudos Avançados. 13 (35), 1999. p.171. Return

5 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 15.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000. p. 196. Return

6 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 – 1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.35. Return

7 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. Return

8  FOUCAULT, Michel. Op. Cit. 2000. p. 199. Return

9 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. 2000. p. 195.  Return

10 AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil (década de 1930). Porto Alegre, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 2002.  Return

11 Durante o período que compreendeu o governo de Getúlio Vargas, as indústrias nacionais receberam um série de incentivos ficais  com a finalidade de fomentar a produção industrial do país, diminuindo consideravelmente a dependência do Estado brasileiro de produtos importados. Return

12 BRASIL. Decreto-lei no 1.886 de 11 de junho de 1953. Return

13 BRASIL. Decreto-lei no 1.985, de 29 de janeiro de 1940.   Return

14 RAGO, Margareth. Do Cabaré a o Lar: A utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. 3a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p.177. Return

15 Amaral, Irnack C. IN: JUNIOR. Francisco de Paula Boa Nova. Op. Cit. p. XIII.  Return

16 JUNIOR. Francisco de Paula Boa Nova. Op. Cit. p. 14.  Return

17 HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 48.  Return

18 MARGARETH, Rago.  Op. Cit. p. 180.  Return

19 JUNIOR. Francisco de Paula Boa Nova. Op. Cit. p. 04.  Return

20 SEGALEN, Martine. A revolução industrial: do proletário ao burguês. in: (Orgs) BURGUIÈRE, André; et all. História da família: o ocidente: industrialização e urbanização. Volume 4. Lisboa: Terramar, 1999. p.13. Return

21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed Petrópolis: Vozes, 2007. p. 127.  Return

22 O SESI e a sua história, harmonizando capital e trabalho. [S.n; S.l]  Return

23 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. 2000. p. 252.   Return

24 O SESI em Santa Catarina. Revista Paulista de Indústria. Nº 26. Setembro de 1954. Return

25 Grandioso plano de assistência social para a região carbonífera. Tribuna Criciumense, Criciúma, 23 de Maio de 1955.  Return

26 C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.  Return

27 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. 2000. p.198-199.  Return

28 C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.  Return

29 JUNIOR. Francisco de Paula Boa Nova. Op. Cit. p. 22.  Return

30 ZACHARIAS, Manif. Mortalidade infantil em Criciúma. Tribuna Criciumense. Criciúma, 27 de maio de 1957. p. 01  Return

31 C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.  Return

32 Ibid.   Return

33 MARTINS, Ana Paula Vosne. “Vamos Criar seu filho”: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. In: Revista História, ciências, saúde. v. 15, n. 1. Rio de Janeiro: Manguinhos, 2008. p. 137.  Return

34 MATOS, Maria Izilda Santos de; MORAIS, Mirtes. Imagens e ações: gênero e família nas campanhas médicas (São Paulo: 1890-1940). In: ArtCultura. Uberlândia, v. 9, n. 14, jan.-jun. 2007. p. 27.  Return

35 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 15.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000. p. 199. Return

36 JUNIOR, Francisco de Paula Boa Nova. Op. cit., 1953. p. 04.  Return

37 C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.  Return

38 Ibid.  Return

39 Ibid.  Return

40 FOUCAULT, 2007, op. cit., p. 149.  Return

 

REFERÊNCIAS:

AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil (década de 1930). Porto Alegre, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 2002.

BRASIL. Decreto-lei no 1.886 de 11 de junho de 1953.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 – 1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 15.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed Petrópolis: Vozes, 2007.

Grandioso plano de assistência social para a região carbonífera. Tribuna Criciumense, Criciúma, 23 de Maio de 1955.

HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec, 1998.

JUNIOR, Francisco de Paula Boa Nova. Problemas médicos –sociais da indústria carbonífera sul catarinense. Boletim No 95. Rio de Janeiro: DNPM, 1953.

MARTINS, Ana Paula Vosne. “Vamos Criar seu filho”: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. In: Revista História, ciências, saúde. v. 15, n. 1. Rio de Janeiro: Manguinhos, 2008.

MATOS, Maria Izilda Santos de; MORAIS, Mirtes. Imagens e ações: gênero e família nas campanhas médicas (São Paulo: 1890-1940). In: ArtCultura. Uberlândia, v. 9, n. 14, jan.-jun. 2007

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RAGO, Margareth. Do Cabaré a o Lar: A utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. 3a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SEGALEN, Martine. A revolução industrial: do proletário ao burguês. in: (Orgs) BURGUIÈRE, André; et all. História da família: o ocidente: industrialização e urbanização. Volume 4. Lisboa: Terramar, 1999.

VASSEUR, Paul. Protection de l’enfance et cohésion sociale du IVe au XXe siècle. Paris: L’Harmattan, 1999.

C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.


Last updated December 30, 2010