Delaware Review of Latin American Studies
Issues
Vol. 10 No. 2  December 30, 2009


Um lance cavalheiresco: duelo e representação da honra na literatura
A Gentlemanly Gesture: Dueling and Representation of Honor in Literature


José Martinho Rodrigues Remedi
Departamento de História e Geografiada
Universidade de Sata Cruz do Sul. UNISC
Santa Cruz do Sul, Brasil
jose.remedi@gmail.com


Abstract
This paper is in fact part of a work in progress - it is a preliminary approach to an analysis aiming at grasping a modern (human) subject whose makeup encompasses multiple discourses, which in turn signal to how living and existing in a city -- an entity in ceaseless construction -- should be. More specifically, through imagetic and literary manifestations, this paper aims at showing a model of the honorable citizen that used to be regarded as desirable by urban society, as well as the means to which this citizen had to resort to preserve his honor and reputation. As an interpretative instrument, the short story Duello, by Miguel Zamacois (Revista do Globo, 1929, Porto Alegre - RS), was used.
Key-words: Duel. Honor. History and Literature.

Resumo
O presente texto, que se apresenta como um work in progress, constitui os primeiros acercamentos para uma análise em que se deseja apreender um sujeito moderno constituído através de discursos múltiplos que sinalizam como deveriam ser seus modos de ser e viver num lugar em construção que é a cidade. Especificamente, através das manifestações literárias e imagéticas, pretende-se chegar ao modelo de cidadão honrado que era desejado para o convívio urbano e aos recursos que ele deveria recorrer para preservar a sua honradez. Como ensaio de interpretação, utilizou-se o conto Duello, de Miguel Zamacois, publicado na Revista do Globo, de 1929, em Porto Alegre, RS.
Palavras-chave: Duelo. Honra. História e literatura.

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Le lessive de l´honneur ne se coule qu´au sang.[1]

Parece ser impossível datar as origens da prática dos duelos. É plausível, entretanto, afirmar que encontramos relatos de duelos já nas primeiras narrativas da civilização ocidental que temos notícia. O lendário poeta grego Homero, nas fundadoras Ilíada e Odisséia, apresenta uma diversidade de duelos memoráveis nos quais se envolvem seus personagens (ADKINS, 1960, p. 23-32). Também entre os historiadores da Antiguidade temos referências ao assunto. Por exemplo, Posidônio “gostava de descrever aqueles banquetes rigorosamente hierárquicos dos celtas em que as pessoas se desafiavam para duelos mortais a respeito de sutis questões de honra, tal como o melhor pedaço de carne” (MOMIGLIANO, 1991, p. 66-67). Parece, no entanto, que foram os germanos que, na sua tradição guerreira, aperfeiçoaram o duelo e, em suas conquistas, estenderam sua prática ao resto da Europa. Já no antigo Direito Germânico,

o que caracterizava uma ação penal era sempre uma espécie de duelo, de oposição direta entre indivíduos, entre famílias, ou grupos. Não havia intervenção de nenhum representante da autoridade. Tratava-se de uma reclamação feita por um indivíduo a outro, só havendo intervenção destes dois personagens: aquele que se defende e aquele que acusa (FOUCAULT, 2002, p. 55-56).

Cabe lembrar que o estudo das mutações que a prática do duelo sofreu no decorrer da Idade Média têm ocupado inúmeros historiadores europeus. De “prova de Deus” (ordálio) a instrumento de direito de costume laico, há um caminho longo e tortuoso. E, novamente, é a narrativa literária que aponta o que parece ser o momento da transição. No Cid, o duelo aparece como instrumento de defesa da honra e não mais como uma prova da intervenção divina (MEREA, 1961, p. 87-116).

A prática dos duelos de honra foi comumente empregada na Europa até a metade do século XIX. E, por imitação e influência “civilizatória”, na América Latina propagou-se e permaneceu como solução dos casos de injúrias à honra até as primeiras décadas do século XX (em alguns países por um período mais extenso).[2]

Muito embora tenhamos diversas possibilidades de leitura interpretativa dos duelos, é certo que existia uma lógica comum e geral no uso do recurso extremo para a defesa da honra ultrajada. O duelo só deveria ser utilizado como recurso final de defesa da honra: o caso deveria ser grave, o embate deveria ser estipulado com antecedência, os padrinhos tentariam uma solução negociada, as armas e as condições deveriam ser equivalentes à injúria e à capacidade dos contendores, e deveria existir um equilíbrio de forças entre os duelistas. Estas eram as regras gerais que poderiam ser acrescentadas de outras, conforme o país e a época, como, por exemplo, a publicação em jornal dos termos do duelo. Travado o duelo, a honra estava restabelecida e o assunto nunca mais poderia ser polemizado entre os duelistas.

Os estudos em língua portuguesa concentram-se em casos passados em Portugal, muito embora Mário Matos de Lemos observe a falta de tratadistas portugueses sobre o duelo. Em Portugal eram seguidos os códigos franceses, particularmente aquele elaborado por Bruneau de Laborie, Les lois du duel, com edições em 1908 e 1912. De 1901 datava a publicação em Leiria de Regras do Duelo, de Eduardo Jayme Picaluga, título português da obra do Príncipe Georges Bibesco e do duque de Fery d'Esclands Conseils pour les duels. O tratado de Croabbon, La Science du Point d'Honeur foi muito menos utilizado. Assim, existiam, em termos gerais, três modalidades de duelo: 1. o decretório, até à morte; 2. o propugnatório, com o objetivo de salvar a honra mas sem o objetivo de matar o adversário; 3. e o satisfatório, realizado quando se tratava de reparar uma injúria.

Em Portugal, durante a Primeira República, os duelos iam até o primeiro sinal de sangue, mas fora de Portugal, na Guiné, território português, o tipo de duelo usado era o chamado "à americana", que prosseguia até o último sangue, quer dizer, até a morte de um dos contendores (LEMOS, 1993, p. 570). Ao que parece, o mesmo valia para o Brasil. Mas, além da falta de manuais e literatura sobre duelos em português, inexistia debate jurídico a respeito da prática dos duelos no Brasil e suas consequências legais. Podemos compreender essa ausência pela tipificação da prática do duelo como crime, estando sua proibição constante já nas Ordenações Filipinas,[3] reafirmada em toda a legislação penal subseqüente, tanto no Brasil como em Portugal. No entanto, é a legislação cível brasileira que oferece um indício de que os duelos eram passíveis de ser praticados no território brasileiro: nosso Código Civil apresenta restrição ao pagamento de prêmio de seguro de vida ao segurado que vier a falecer em razão de duelo.[4] Sabendo-se que este Código foi reformulado e promulgado em 1940, após uma ampla discussão entre juristas e legisladores, podemos supor, então, que se tratava de uma prática corrente contra as quais as companhias de seguro precisavam se precaver.

Se no período imperial a honra faz parte da própria estrutura de poder (muitos cargos são acompanhados de títulos de nobreza, só obtidos por pessoas “honradas”), não é com o fim do Império brasileiro que ela sai de cena. Especificamente, no período de instauração e consolidação da República brasileira, intelectuais e autoridades públicas apresentavam uma compreensão simples e direta da função da honra no processo de modernização/ civilização republicana: a honra — em particular, a sexual — era a base da família, e esta, a base da nação (CAULFIELD, 2000, p. 43-57).

Assim que, mesmo se a definição dos conceitos de honra e de civilização tenham provocado intensas controvérsias no final do Império e nas décadas de transformações políticas, sociais e culturais que se seguiram à implantação do novo regime, a honra em si foi um componente fundamental no discurso civilizador da nascente República. Nesse período, o estado do Rio Grande do Sul tem papel singular na história brasileira, quer pelo seu perfil político calcado no Positivismo, quer pela diversidade cultural das comunidades migrantes.

Indivíduos integrantes das mais diversas comunidades constitutivas da população gaúcha, incluindo os imigrantes, quando envolvidos em conflitos diversos (políticos, sexuais, sociais), aplicavam o conceito de honra vigente na resolução das contendas. Contudo, como um indicador da complexidade das regras de sociabilidade da cultura gaúcha, parece certo que a honra foi interpretada de diversas formas em situações e locais diferentes, o que, em grande medida, determinou o pertencimento ou não dos indivíduos a certos grupos sociais.

Apesar da longa tradição de estudos na área da filosofia e da moral, o tema da honra somente em período recente começou a atrair os historiadores. Na historiografia brasileira, os estudos dos conceitos e usos da honra, embora escassos, têm concentração nas análises de gênero em que se investigam as relações entre a defesa da honra feminina, as posições de subalternidade feminina, as lutas emancipatórias e as ressemantizações do conceito de honra.[5] Contudo, os aportes da antropologia social, que produziram um número bastante significativo de trabalhos acerca da honra, da vergonha, do status, trazem novas possibilidades de interpretação histórica dos fenômenos sociais ligados a esse tema (PITT-RIVERS, 1968, p. 503-11).

Conforme Pitt-Rivers, a noção de honra não está apenas ligada à necessidade de aprovação ou reprovação social. Possui uma estrutura geral que se revela nas instituições e juízos de valor tradicionais de cada cultura. Ratifica-se por um apelo aos fatos — aos quais impõe a sua própria interpretação — e envolve-se, portanto, em contradições que se refletem nos conflitos da estrutura social. O que entendemos por “pessoa honrada”, bem como o que venha a ser a própria honra têm variado de uma época para outra, de uma região para outras, entre diferentes culturas, e, principalmente, de uma classe para outra (PITT-RIVERS, 1988, p. 13-14).

Para melhor compreendermos o sistema ideal de valores de honra e as distorções que esse sistema sofre na sua aplicação prática, alguns fatores precisam ser levados em conta. Os valores da honra são particularistas, individualistas, e, não raro, egoístas. Em geral, a proteção dos interesses da esfera privada, e, nesse âmbito, os da família, é fundamental. Esses valores se revelam mais intensos em comunidades menores. Dois principais fatores parecem exemplificar essas constatações: a) a inalienável obrigação de um homem ou de uma mulher para com os deveres familiares, acima de quaisquer outros; e b) a estratificação social bem definida, com o poder político e econômico nas mãos de uma pequena minoria, o que exclui a grande maioria, fadada a competir pelo recebimento de favores (PERISTIANY, 1988, p. XVII).

Em um sistema ideal, cabe ao homem a responsabilidade sobre uma família. Deve ser corajoso sem ser temerário, firme sem ser teimoso e dotado de bom senso e sabedoria de vida para estabelecer compromissos sem sacrificar a independência. O acesso a essa condição, aos direitos e aos deveres da hombridade, se dá pelo casamento. O homem solteiro permanece na condição de “rapaz” e o seu status social será sempre inferior ao de um homem casado.

O status de qualquer família depende de fatores morais e de fatores materiais. Idealmente, a divisão dos sexos é objetiva: cabe ao homem assegurar a sobrevivência material e, se possível, a prosperidade da família; cabe à mulher garantir que permaneça intacta a sua integridade moral. A falência do marido e o adultério da mulher são situações limites que podem levar uma família à derrocada. Cada família real procura aproximar-se deste modelo ideal, mas, evidentemente, a tarefa é menos árdua para as famílias mais prósperas (PERISTIANY, 1988, p. XVIII-XIX). Assim, enquanto o sistema de valores ideal parece ser o mesmo para todos os grupos da sociedade, as possibilidades de viver de acordo com ele variam substancialmente segundo a posição de cada família na estratificação social.

Portanto, um sistema de valores nunca é um código homogêneo de princípios abstratos a que obedecem todos os participantes de uma dada cultura e que pode ser extraído de um manual com o auxílio de perguntas hipotéticas, mas uma coleção de conceitos inter-relacionados e utilizados de maneira distinta pelos vários grupos sociais definidos por sexo, idade, classe, ocupação, em contextos que lhes conferem diferentes significados (PERISTIANY, 1988, p. 13-14).

Em 1929, a novíssima Revista do Globo publicava o conto Duello, de Miguel Zamacois,[6] especialmente traduzido para integrar aquela edição. A narrativa tratava de um incidente envolvendo dois cavalheiros, acontecido em um café parisiense, que resultava no desafio para um duelo. Assustado, o personagem desafiado, um citadino pouco habituado aos códigos de reparação da honra ultrajada, busca a ajuda de um amigo. No final, revela-se que o desafio não passara de um ardil arquitetado por um exímio batedor de carteiras.

Não deixa de ser interessante pensar nas razões pelas quais um conto tratando desse assunto tenha sido publicado na remota Porto Alegre dos anos 20. A Revista do Globo, um Quinzenário de Cultura e Vida Social, fora planejada para atender aos anseios da capital moderna, que já contava com quatrocentos mil habitantes. Entre seus incentivadores figuravam intelectuais, políticos e homens de negócios (REVISTA DO GLOBO, 1929, p. 1). Nascida de uma conversa entre Getúlio Vargas, presidente do Estado, e Osvaldo Aranha, secretário do Interior, rapidamente a Revista engajou-se numa corrente que aspirava a transformação da cidade de Porto Alegre em uma metrópole moderna.

O perfil do leitor ideal do quinzenário era o de um sujeito moderno – independentemente do fato de ser homem ou mulher. Deveria ser um daqueles cidadãos adeptos da civilidade, que fazia o footing, frequentava restaurantes, cinemas e cafés – novos espaços de socialização nos quais os códigos éticos que garantiam a convivência pacífica, ainda em elaboração, precisavam ser seguidos rigorosamente. Vemos, assim, que o conto publicado na Revista do Globo falava para uma cidade que vivia intensamente o conflito de querer ser moderna e ainda trazer vestígios de um passado nada distante, em que os casos de ofensa de honra precisavam ser resolvidos na base do destemor e da coragem pessoal. O conto parece dirigir-se a uma cidade dividida em duas realidades distintas: uma que tem a cultura da honra e consegue ler as nuances do código de duelo, ainda fortemente inscrita na sua memória; e uma outra, que ironiza com o arcaísmo e busca a modernidade. Essa luta pelo progresso e pela modernidade, segundo Pesavento, transparece no “desejo de ser metrópole”:

A rigor, o discurso do progresso teria os seus arautos nos produtores oficiais da cidade, detentores de cargos públicos e setores estratégicos responsáveis pelos problemas urbanos e pelas ações diretas sobre a cidade. Portanto, é nos documentos oficiais ou nas revistas especializadas que melhor se articula o discurso progressista sobre Porto Alegre (PESAVENTO, 1999, p. 317).

Os contos e as crônicas desde muito desenhavam em suas linhas a cidade desejada, revelando uma disputa de representações para nomear e descrever a capital Porto Alegre, ora em franca progressão rumo à vida de metrópole, ora em pacata estagnação da velha cidade com ares coloniais. Mas, ao que parece, prevalecia o desejo de que a cidade se modernizasse. Mesmo os que se ressentiam do fim da calma e do sossego da aldeia, reconheciam a necessidade da modernização. Assim, os discursos faziam coro na luta contra a barbárie e o arcaísmo dos incivilizados costumes antigos:

(...) das páginas dos jornais e revistas, a crônica vem alinhar-se também para expressar esse “desiderato” de ser e parecer moderno, que olha a cidade e vê nela a metrópole. Estaríamos diante da construção de um outro mito, outro conjunto de imagens e discursos que se articulam em torno da noção de progresso (PESAVENTO, 1999, p. 317).

Existia, portanto, uma Porto Alegre que deseja alcançar o cosmopolitismo e outra que não abria mão do seu passado, no qual se incluíam os recursos violentos e pessoais de defesa contra as ofensas à honra. Muito provavelmente, estas visões de cidade pudessem coabitar num único projeto de modernização. Para os defensores dos duelos, a prática era a demonstração última da civilidade e caracterizava uma das facetas da cidade moderna. Para outros, não havia cabimento numa tal forma de reparação da honra, e outros recursos começavam a ser praticados, como a exigência de reparação através da imprensa.

Assim, apesar do caráter prosaico na narrativa presente no conto Duello, que sugere um súbito encontro entre práticas sociais modernas e tradicionais, chama a atenção o fato de que os editores de uma publicação destinada ao público esclarecido optassem por traduzir uma peça literária que traz à tona a prática do duelo. Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que é recorrente a referência a duelos e/ou a desafios a duelos na história brasileira e, em particular, na história gaúcha.[7] Ao contrário, circulavam notícias de situações em que a honra de cidadãos era posta em questão. E, não raro, a solução para os casos de ofensa era este tipo de enfrentamento direto, na base do homem a homem. Em geral, a parte ofendida pedia reparação pelas armas; se o embate realmente acontecia era outra questão.

Podemos, facilmente, citar alguns casos exemplares de confrontos ligados a questões de honra. A título de exemplo, foram bastante conhecidos os seguintes episódios: o duelo entre o general Bento Gonçalves e o coronel Onofre Pires; os frequentes desafios ao duelo lançados (por vezes, da tribuna do Senado) pelo senador gaúcho Pinheiro Machado; os duelos travados pelo conhecido polemista Carlos Cavaco (no mínimo dois foram noticiados na imprensa); o conturbado caso de implantação de Tribunal de Honra após a Revolução de 1932, a pedido do general Flores da Cunha (outro conhecido duelista) para julgar as acusações de traidor que lhe eram imputadas; por fim, o desafio lançado na imprensa pelo médico Jacinto Gomes ao, também médico, Raymundo Vianna, após intenso debate e disputa interna da Faculdade de Medicina de Porto Alegre.

Em todos estes casos, contudo, tanto os desafiadores como os desafiados tinham ciência das práticas sociais que poderiam redundar num desafio para duelar. O conto de Zamacois (REVISTA DO GLOBO, 1929, p. 5), inserido no contexto da moderna Paris, que era a maior referência para grande parte das capitais do mundo ocidental, traz uma série de informações que localizam a ação e os protagonistas.

Já no começo apresenta-se uma residência tipicamente urbana, equipada com campainha elétrica, situada em uma habitação coletiva (provavelmente um edifício de apartamentos), e, como tal, rica em inconvenientes: o botão que emperra, os vizinhos curiosos. As invenções da modernidade ainda são experimentos precários e o anonimato ainda é um desejo irrealizável.

Resolvida a situação, os dois amigos finalmente podem esclarecer o que levou à impaciente visita. O caso é descrito como uma “coisa extraordinária”, um “lance cavalheiresco”.[8] Perguntamos, então, como “um homem tão bom e tão pacífico”, estaria envolvido em tais assuntos e, nesse comentário, há uma reprovação implícita à prática dos lances cavalheirescos: a modernidade justamente lutava para colocá-los em desuso. A aplicação da lei e a da violência pertencem, no mundo moderno, exclusivamente ao Estado, através de seus aparelhos judiciais e policiais. Contudo, as resoluções de conflitos, independente da natureza que tivessem (pessoais, comerciais ou criminais), só de maneira muito gradual passaram para a alçada do Estado. Talvez por essa razão, o personagem, que parecia ser um sujeito perfeitamente atualizado em relação aos assuntos da vida moderna, viu-se compelido a aceitar o desafio, sem desconfiar que se tratava de uma encenação.

O incidente em questão teve lugar em um café, um dos lugares-ícones da vida citadina, grandemente disputado pela sociabilidade moderna. Proporciona o palco que publiciza a moda, os costumes, as novidades comportamentais. Logo, não parece adequado que um de seus frequentadores tenha hábitos que não condiziam ao lugar e às circunstâncias. Mas é justamente num café, nesse conto, que o desagravo à honra acontece. De acordo com o narrador, a cena se desenrolou da seguinte maneira: “estava eu sentado, quando um indivíduo me aplica uma violenta pisada com o intuito evidente de me provocar”, como resposta, diz o agredido duramente ao agressor: “Senhor! Pisou-me no pé!”. Estavam postas as condições para que a situação evoluísse para uma ofensa grave.

Conforme Pitt-Rivers, “palavras e ações são significativas no código da honra porque são expressões de atitude que reivindicam, concedem, ou não reconhecem honra. A honra, todavia, só se compromete irrevogavelmente na presença de testemunhas que representem a opinião pública” (PITT-RIVERS, 1988, p. 18). O conhecimento público é essencial para a existência de uma afronta à honra, sendo, inclusive, questionável a existência de ofensa por atos ou palavras que não tenham sido testemunhados. E, no caso em questão, o sujeito ofendido é um frequentador do café, lugar público no qual certamente busca reconhecimento dos outros frequentadores.

O ofensor, depois de um curto silêncio, que conduz a uma densidade dramática, responde: “Quando a gente tem os pés grandes como os seus, o melhor é tomar um gabinete reservado!”. O primeiro requisito das determinações do Código de Duelo para a possibilidade de exigir reparação estava dado, a existência de troca verbal de insultos. Mas, imediatamente, o ofensor, para não deixar dúvidas, passa à agressão física. Nas palavras do agredido, “agarrou-me, me sacudiu, me deu umas reviravoltas, lançando-me palavrões e injúrias”. A partir de então, tornava-se impossível, para pessoas honradas, outra resolução que não a reparação da honra pelo duelo. Afinal, em uma sociedade civilizada, a afronta física é o último estágio da degradação moral. A proscrição da violência física espontânea e desregrada é uma das finalidades dos códigos de honra. No máximo, podia-se permitir uma “bofetada ritual” no rosto, desde que feita com um simples toque de luvas.

O ato final do jogo público que estava sendo encenado é a retomada da civilidade, a troca de cartões de visita e a comunicação, feita pelo desafiador, de que estaria à espera dos padrinhos para a “concertação” do duelo. Note-se que não há maiores explicações do autor sobre o que se passou e suas consequências práticas, subtendendo-se que personagens e leitores são sabedores da ritualística dos duelos de honra.

No momento seguinte, o amigo do ofendido pondera que, segundo o relato, o sujeito, um “energúmeno”, não estaria “disposto a atender a nenhuma razão”. Pois era possível o pedido de desculpas, negociação a cargo dos padrinhos. Deve-se, no entanto, compreender que

a intenção é um componente necessário da competição por honra expressa no desafio [duelo] – a essência de um insulto é que alguém tenha ousado nos insultar. As desculpas, quando apresentadas, tomam portanto geralmente a forma de uma negação da intenção de ofender. A falta de intenção reduz a gravidade do insulto, torna as desculpas mais fáceis de aceitar e reduz a humilhação de quem as pede, tornando-as, por sua vez, mais fáceis de pedir” (PITT-RIVERS, 1988, p. 19).

Ao que parece não era o caso em questão e o padrinho não poderia arriscar uma perda maior de honra de seu amigo, pois que,

as intenções são todavia de extrema importância para o estabelecimento da honra porque demonstram o sentimento e caráter dos quais a honra, como conduta, deriva. Mostrar intenções menos honrosas é perder a honra, sejam quais forem os resultados. Desejar fugir de uma batalha é desonroso, quer se consiga fugir quer não, enquanto a honra – e neste caso a honra expressa numa forma de conduta que dá provas dos melhores sentimentos – pode ainda ser salva quando todo o resto se perdeu (PITT-RIVERS, 1988, p. 18).

Sem dúvida, não restava outra saída senão ir às questões práticas e preparar-se para o duelo. Os envolvidos passariam, então, a ponderar a respeito das armas, pois era o ofendido que as escolhia. Finalmente, acabam escolhendo a espada. O personagem que assume o papel de padrinho é o mais esclarecido e preparado para a condução dos passos do ritual do duelo. Não só conhece os trâmites, como, surpreendentemente, tem à disposição um florete para que passem imediatamente ao treino para o combate. Antes de começar a preparar-se, o desafiado retira o paletó e o colete e esvazia os bolsos – artifício utilizado pelo autor do conto para revelar os objetos que a vítima do golpe carrega consigo – um relógio, um chaveiro, uma caixa de óculos, um espelhinho e algumas moedas de prata e de cobre. Sem dúvida, é um homem da modernidade, um daqueles sujeitos perfeitamente inseridos no burburinho da cidade moderna. O relógio denuncia que seu tempo está regulado pelo ritmo urbano; o chaveiro representa a necessidade dos controles e da segurança nos espaços privados; os óculos falam tanto dos progressos da Medicina, quanto de uma cotidiana prática da leitura; por fim, o espelhinho portátil, denota uma vaidade típica dos frequentadores dos ambientes citadinos, em constante exposição pública. Este conjunto de artefatos definitivamente o colocam dentre os cidadãos de uma urbe moderna.

Tão ocupado esteve o personagem em tentar desembaraçar-se do problema que se apresentou, que só pelo esvaziamento dos bolsos percebeu a ausência de sua carteira, que continha quatro mil francos. Começa, então, a desvendar-se o real motivo do incidente do café. O amigo, e seu quase padrinho de armas, dá luz ao imbróglio: a situação não passara de um golpe para que se efetuasse o roubo da carteira. A pisadela no pé, a troca de ofensas, os safanões foram produzidos para oportunizar o contato físico que permitiu o furto. O desafio ao duelo e a troca de cartões de visita servira para desviar a atenção da vítima, dando tempo suficiente para o esperto larápio sair de cena com tranquilidade. E, como toque final para a trama, o cartão de visitas do agressor não existia. Num golpe de ilusionismo, o ladrão lhe devolvera o mesmo cartão que tinha recebido.

De qualquer maneira, chama a atenção que, em plena modernidade, ainda fossem reconhecidos os códigos arcaicos de defesa da honra. Em um momento de afirmação do Estado e da civilidade cidadã, nega-se a resolução de um conflito pelas normas legais coletivas e invoca-se uma saída pessoal.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, o desejo de civilidade convivia com toda a cultura da valentia e do heroísmo do gaúcho, em grande parte baseada na violência. Mesmo que saibamos ser o monarca das coxilhas uma construção imaginária[9] e carregada de ideologia, é certo que o estereótipo exercia, como ainda exerce, influência no modo de ser dos habitantes do estado. A honra deste modelar gaúcho somente se preserva quando sem ofensas ao seu capital moral. Portanto, sua defesa deve ser levada até as últimas consequências.

Se os jornais e revistas da capital sulina são os veículos de uma cruzada modernista, vivemos também o que Guilhermino César (1994, p. 52 e segs.) chamou de “a idade de ouro” da literatura regionalista gaúcha. Pela simples leitura dos títulos de obras dos anos 1890 a 1930[10] podemos inferir a forte presença da gauchesca como temática preponderante. O urbano somente ganhará força na literatura gaúcha com a geração posterior a 1930.

A literatura romanesca produzida a respeito do gaúcho, pelo menos até as primeiras décadas do século XX, pontuou a construção de uma imagem heróica do habitante dos pampas. As denominações monarca das coxilhas e centauro dos pampas, e suas variantes, povoam as obras líricas e romanescas. Esse personagem arquetípico é um herói destemido, corajoso, ético, justo e leal. É esse herói, que na tradição do herói romântico, irá se defrontar com vilões, perigos e infortúnios do destino. Diligentemente vencerá todos os obstáculos, e, se lutou com honradez e lealdade, obterá as recompensas amorosas e sociais.

Um dos instrumentos utilizados na carpintaria romanesca, para a demonstração dos valores de honra, força e lealdade do herói é o duelo de honra. O confronto equilibrado dentro de regras estabelecidas rigidamente em códigos cavalheirescos esteve presente desde o início do romance moderno — e antes dele nos livros de cavalaria andante. Ora, apresentado diretamente com todas as praxes do duelo de honra, ou, por vezes, apresentado indiretamente através da encenação dos passos necessários para a produção do confronto equilibrado.

De qualquer forma, os duelos se apresentam como momentos-chave nos quais o herói e/ou o vilão são testados em seus atributos éticos e morais. Muitas vezes, não constituem apenas os ápices da ação romanesca, como produzem a principal motivação da vida dos personagens. Especificamente, no caso da gauchesca, os duelos estão presentes na quase totalidade das obras conhecidas.

De maneira breve e fragmentária, podemos citar algumas passagens literárias de duelos para análise desse processo de construção da honradez do gaúcho. Para começar, A divina pastora, de Caldre e Fião, de 1847, foi o segundo romance publicado no Brasil e tem como cenário a Porto Alegre no período da Revolução Farroupilha; segue O gaúcho, de José de Alencar, de 1870, um dos autores canônicos da geração romântica; o conto Duelo de Farrapos, de J. Simões Lopes Neto, de 1912, da obra Contos Gauchescos; logo após, Don Segundo Sombra, do argentino Ricardo Güiraldes, de 1926, uma das obras consideradas fundadoras da literatura argentina; Capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo, de 1949, e parte integrante do Tomo O continente, de O Tempo e o Vento; e, por fim, o conto Sur, de Jorge Luis Borges, de 1944, publicado em Artifícios.

A fecundidade das representações veiculadas no discurso ficcional impõe ressaltar que a análise histórica da literatura — neste caso, em particular, a que tematiza as disputas pela honra — é uma possibilidade de apreender as peculiaridades do confronto cultural provocado pelo encontro das diferentes concepções de cultura, portadoras de tradições e valores que ora se aproximam, ora se distanciam, e que estão reunidas num espaço comum: a cidade de Porto Alegre. É, também, uma oportunidade singular para discutirmos o papel da literatura na sociedade e na história (LEENHARDT, 2000).

Observando-se esses debates, percebemos o distanciamento da história das discussões do campo da literatura, empreendido na ânsia cientificista no início do século XIX, quando

tornou-se convencional, pelo menos entre os historiadores, identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o oposto da verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um meio de apreendê-la. A história passou a ser contraposta à ficção, e sobretudo ao romance, como a representação do ‘real’ em contraste com a representação do ‘possível’ ou apenas do “imaginável” (WHITE, 1994, p.139).

Atualmente, longe de apregoar a equivalência total entre as produções históricas e literárias, defendemos que, mesmo originárias de planos epistemológicos diferentes, elas são recortes, aproximações da realidade que se manifestam através de meios narrativos. Assim, é possível que o diálogo da historiografia com os estudos literários, além das já conhecidas contribuições acerca da consciência da narrativa histórica, possam trazer a produção literária propriamente dita ao campo das análises histórico-historiográficas, ou seja, como fonte para a história e fonte de história.

A tradição de defesa da honra com o derramamento de sangue, evidentemente, assentava-se sobre um complexo sistema de valores. Cabe, então, analisar em que medida esse sistema de valores vincula-se à necessidade de distinguir “civilização” de “barbárie”. Afinal, o duelo, essa espécie de “violência elegante” em que regras bastante rigorosas eram seguidas, pode ser entendido como uma forma de evitar brutalidades maiores. Mas também interessa verificar quem eram e que posição social ocupavam os indivíduos autorizados para a prática do duelo, e quais as razões da alternância de atitude do Estado (entre a omissão e a punição), diante deste fenômeno social.

Assim, o estudo dos usos dos conceitos de honra representa compreender um conjunto de normas que, muitas vezes justificadas pelo seu suposto caráter natural, sustentam a lógica da manutenção de relações desiguais de poder nas esferas pública e privada. Tanto a análise de casos particulares como da sociedade analisada no seu conjunto, desvelam os usos dos conceitos de honra para consolidar posições hierárquicas baseadas em relações de raça, classe e gênero. Partindo-se da noção de que os padrões de desigualdade entre indivíduos de uma mesma sociedade não se estabelecem por leis naturais, necessitamos examinar como se dá a construção das regras de honra a partir de processos históricos dinâmicos e contínuos.

À guisa de conclusão

O que apresentamos até aqui é um work in progress. São os primeiros acercamentos para uma análise em que se deseja apreender um sujeito moderno constituído através de discursos múltiplos que sinalizam como deveriam ser seus modos de ser e viver num lugar em construção que é a cidade. Especificamente, através das manifestações literárias e imagéticas pretendemos chegar ao modelo de cidadão honrado que era desejado para o convívio urbano e aos recursos que ele deveria recorrer para preservar a sua honradez. Este modelo de cidadão moderno, apesar de aspirar à universalidade, é objeto de disputa entre diferentes agentes que o desejam mais ou menos próximo da modernidade e/ou da tradição, ou ainda, por paradoxal e contraditório que aparente ser, de ambos. Evidentemente, não buscamos um modelo de cidadão nem um modelo de honra. O que tentamos descortinar é, particularmente, a situação daquele cidadão que vivia na incipiente metrópole sulina, a Porto Alegre do início do século XX, e que se confrontava com os dilemas de afirmação da cultura regional e os desejos de inserção no mundo cosmopolita.

Verificar os veículos das representações que disputam a primazia de dizer o real parece um caminho profícuo. A via das fontes literárias são fecundas em informações sobre os sonhos e utopias que projetaram a sociedade. Sobre os usos da literatura como fonte e sua relação com a história, Pesavento diz que:

sendo ambas representações do real, a história tem a tendência de utilizar, por vezes, a obra literária como uma “fonte a mais”. Nossa idéia é de que a literatura não pode ser entendida como uma “fonte a mais”, mas justamente como a fonte que pode dar aquele “algo a mais” que os documentos comumente usados pela história não fornecem. Referimo-nos ao que se poderia chamar as sensibilidades ou a “sintonia fina” de uma época, as características essenciais que estariam na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e, sobretudo, de representar o mundo. (…) Diríamos mais: deve entendê-la como “sintomas” de uma época, correspondendo ao sistema de idéias e imagens dos homens de um outro tempo (PESAVENTO, 1999, p. 13).

Assim, desvendar as intencionalidades e as fissuras de textos veiculados em publicações que tinham uma importância cultural e política para a sociedade gaúcha, como foi a Revista do Globo, é desafio para os que desejam se vincular à história cultural. Através do cruzamento desses discursos poderemos vislumbrar, ainda que seja como construção imaginária, os gaúchos honrados que viviam na capital. Mas isto ainda é um desafio: desvendar os caminhos de formação de um valor tão apregoado pelos sul-rio-grandenses, em seus vários campos de atuação, dos esportes à política – a honradez.

NOTAS

[1] As nódoas da honra só se lavam com sangue.

[2]   A partir da década de 1920 recrudescem os debates pela criminalização dos duelos nos países hispânicos. No entanto, o duelo é legalmente permitido em vários países até os anos 1950 e, no Uruguai, permanece legal até 1992. Curiosamente o presidente Julio Maria Sanguinetti, em 1999, escreveria artigo lamentando a proibição do duelo, para ele importante elemento da cultura uruguaia. Ver El País, Montevideo, 28 fev. 1999 apud PARKER, D. S. L, Honor, and Impunity in Spanish America: The Debate over Dueling, 1870–1920. Law And History Review, v. 19, n. 2, Summer 2001.   [Retorno]

[3]   As Ordenações Filipinas incorporam as condenações aos duelos dispostas na Ecclesiastica do Concílio Tridentino, sancionando com duras penas os duelistas (perda dos bens e degredo para África). Conforme Ordenações, Livro V, Título XLIII — Dos que fazem desafios. In: ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (Org.). Ordenações Filipinas: ordenações e leis do Reino de Portugal recopiladas por mandato d'el Rei D. Felipe, o Primeiro. São Paulo: Saraiva, 1957-1966. 3 vols. [Editadas em Portugal a 13 de janeiro de 1603]   [Retorno]

[4]  Considerava-se na legislação vigente até o ano de 2002 morte voluntária a recebida em duelo e o suicídio. Nestes casos, as seguradoras estariam desobrigadas do pagamento de prêmios. Ver BRASIL. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, Título XIV — Do Contrato de Seguro, art. 1440, § único, p. 242.   [Retorno]

[5]  Ver, entre outros autores, as seguintes: ESTEVES, M. A. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; Caulfield, S.; ESTEVES, M. A.. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro da Belle Époque: as políticas da sexualidade no discurso jurídico e popular, 1890-1940. Caderno Espaço Feminino, 1, p. 15-52, 1996; Caulfield, S. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). São Paulo: UNICAMP, 2000. 393 p. (Coleção Várias Histórias); AREND, S. F. Casar ou amasiar?A família popular em Porto Alegre no final do século XIX. Porto Alegre: UFRGS, 2001. 96 p. (Coleção Academia).   [Retorno]

[6]  Escritor francês, nascido em Louveciennes em 1866, morto em Paris em 1955. Começou sua vida literária aos 25 anos escrevendo poesias e contos. Sua produção maior foi para o teatro com Bohemos, Le Gigolo, La Fleur Merveilleuse. Sua principal peça teatral, Les Bouffons, “est une comédie fantaisiste et lyrique, pleine d'esprit, de verve et à la versification des plus adroites”. Outras obras: Sang de Navet, Seigneur Polichinelle.    [Retorno]

[7]  Podem Sr destacados dois estudos produzidos por brasilianistas que abordam questões de honra no Rio Grande do Sul. O primeiro texto, de Chasteen, analisa os duelos com facas travados por gaúchos na fronteira Brasil-Uruguai, no período que seguiu o término da guerra da Cisplatina, usa farta documentação judiciária e policial, e discute a importância da defesa da honra para a cultura dos homens da fronteira. Conclui que a honra é um dos bens mais importantes para estes gaúchos e a afronta pública só pode ser sanada pela resolução pessoal, violenta e mortal. É um estudo que ganha maior importância ao focar indivíduos pouco estudados na nossa historiografia — os gaúchos pobres da Campanha. Ver CHASTEEN, J. C. Violence for Show: Knife Dueling on a Nineteenth-Century Cattle Frontier. In: JOHNSON, L. L. (Ed.). The Problem of Order in Changing Societies: Essays on Crime and Policing in Argentina and Uruguay, 1750-1940. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 47-64. E, de 1998, temos a comunicação de Monsma, apresentada no Congresso da LASA, na qual relata o conflito entre o comerciante urbano Comendador João Francisco Vieira Braga (futuro Conde de Piratini), e o estancieiro Alferes Boaventura José de Oliveira, e o processo de calúnia daí decorrente. Tem como base o argumento de que a honra constitui uma forma de capital simbólico que indica o valor do indivíduo como parceiro nas relações de troca social. Assim, apesar dos homens envolvidos no conflito valorizarem igualmente a honra, suas concepções não eram idênticas, transparecendo diferenças entre a honra das elites rurais e a da comunidade mercantil. Enquanto os estancieiros tendiam a valorizar a palavra empenhada, os comerciantes davam grande importância aos contratos escritos. Desta forma, grande parte das atitudes tidas como honradas por uma das partes podiam ser entendidas como tentativas de fraude pela outra. Esse confronto teve vários desdobramentos — desde o processo judicial até debates pelos jornais. O trabalho de Monsma aponta importantes hipóteses para o entendimento da violência na cultura gaúcha, e, principalmente, para a compreensão das diferenças entre urbano e rural no espaço sul-rio-grandense. Ver MONSMA, K. The Meaning of Honor: A Case of Libel in 19th Century Rio Grande do Sul. XXI INTERNATIONAL CONGRESS OF THE LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, Chicago, September 24-26, 1998.   [Retorno]

[8]  A partir deste ponto do texto todas as citações sem identificação são extratos de ZAMACOIS, Miguel. Duello. Revista do Globo, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 5, 2 fev. 1929.    [Retorno]

[9]  Sobre o tema da construção imaginária da sociedade gaúcha ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. A invenção da Sociedade Gaúcha. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 383-396, 1993. [Retorno]

[10] Pode-se exemplificar com: Recordações Gaúchas (1898), de Luís Araújo Filho; Ruínas Vivas (1910), de Alcides Maya; Cancioneiro Guasca (1910), de João Simões Lopes Neto; Nas Coxilhas (1912), de João Fontoura; Lendas do Sul (1913), de João Simões Lopes Neto; Terra Gaúcha (1914), de Roque Callage; Casos do Romualdo (1914), de João Simões Lopes Neto; Antônio Chimango (1915), de Amaro Juvenal; Rincão (1921), de Roque Callage; Alma Bárbara (1922), de Alcides Maya; No Galpão (1925), de Darcy Azambuja; Pampa (1925), de João Maia; Tropilha Crioula (1925), de Vargas Neto; Quero-quero (1927), de Roque Callage; Gado Xucro (1928), de Vargas Neto; e, Umbu (1929), de João Fontoura. Ver mais em ZILBERMAN, Regina. Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1985; CESAR, Guilhermino. Notícia do Rio Grande — Literatura. Porto Alegre: IEL/ UFRGS, 1994; e BERTUSSI, Lisana. Literatura Gauchesca: do cancioneiro popular à modernidade. Caxias do Sul: EDUCS, 1997.   [Retorno]


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Last updated December 27, 2009