Delaware Review of Latin American Studies
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Vol. 9 No. 2  December 30, 2008

Negra Música Urbana Presentation
Dão
Brazilian musician and composer
The Center for the Arts
University of Delaware

Dãa, Brazilian musician and composer

Olá, eu me chamo dão, sou cantor e compositor, artista brasileiro, nascido na cidade do Salvador, capital do Estado da Bahia.

Antes, quero dizer que estou muito contente por estar aqui, que estou muito feliz por ter sido convidado pela universidade de Delaware, para participar desse evento, que visa fortalecer diálogos entre as culturas. Eu, como artista, sinto-me honrado e desejo que esse projeto: "Saberes Alternativos", tenha muitas primaveras, tenha muitos anos de vida.

Obrigado a Carla Guerron, a Julio Carrion, e a vocês por terem vindo.

Salvador é a cidade onde mais de 88% da população é afrodescendente, ou seja, somos uma cidade negra.

A Bahia recebeu:

20 mil africanos no séc. XVI
205 mil africanos no séc. XVII, segundo Viana Filho
2 mil africanos por ano no séc. XVIII, segundo Maurício Goulart

Para os séculos XVIII e XIX, foram construídas várias séries de pesquisas, por vários estudiosos.

O número certo mesmo, quem souber... Trago esses termos apenas para ressaltar a Afro-Grandeza da Bahia, por isso, hoje vamos falar do que ficou de positivo em relação a esses episódios; esses africanos chegaram no Brasil com seus costumes, com sua religiosidade, sua culinária, seus ritmos, suas danças, sua música.

Mesmo com a existência da miscigenação, o que ficou mais presente na população baiana foram os costumes já citados.

Em se tratando de herança musical no Brasil, o samba é hoje a nossa melhor e maior célula rítmica.

A semelhança com o nosso samba é tão impressionante que não deixa dúvida: o samba é um filho legítimo da África.

"SAMBA DA BENÇÃO"
                                                   
“SARAVAQUELÉ”

"Minha infância"

Na minha infância, eu fui colocado diretamente no samba.

Minha mãe trabalhava num hospital público lá da cidade, ela é enfermeira, e quando chegavam os dias de domingo em que ela não trabalhava, ela reunia as amigas, comprava cerveja, cozinhava uma panela de feijão ou, melhor dizendo, fazia uma feijoada! E tudo acontecia na sala da casa onde morávamos.

Elas formavam um círculo e daí começava a brincadeira. Aos poucos todas entravam nesse círculo e começavam a sambar, dançavam em pares, dançavam sozinhas e faziam movimentos de batidas de umbigada, que é o semba, ritmo original de Angola que também originou o samba.

Eu e meus irmãos ficávamos assistindo a tudo aquilo, loucos, ansiosos para poder participar.

Minha mãe percebendo, começou a nos lançar na roda de samba.

A partir daquele momento começamos a nos sentir pessoas interessantes. Justamente porque estávamos aprendendo a sambar.

cantarolo candeia “vem pra roda menina mexendo as cadeiras vem sambar.."

Enquanto a minha mãe trabalhava no hospital, e tomava conta dos 5 filhos, o meu pai trabalhava como caminhoneiro, rodando pelas estradas brasileiras.
A contribuição musical vinda através do meu pai também é muito importante, porque fazendo essas viagens de trabalho, ele nos trazia muitas informações musicais.

Olha que ele passava de 15 a 20 dias fora de casa, conhecendo culturas e sons diferentes.

Em cada lugar que ele passava, geralmente existia alguém vendendo fitas k7, com músicas daquele local, ou músicas famosas em todo país, mas eram músicas de uma geração mais antiga.

Ele comprava muitas fitas, e seguia viagem ouvindo-as. Quando ele chegava em casa, nos dava algumas, e nós, para matarmos saudades quando ele estava viajando, ouvíamos todas as fitas, e acabamos criando uma afinidade com aquelas canções:

"Formação musical"         

Minha formação musical, vem de diversas convivências.
Desde a convivência com o rádio, como também com as manifestações de cultura popular que aconteciam no meu bairro. Ouvíamos um estilo de música chamado: samba-duro, ou samba junino.

No meu bairro existiam muitos jovens envolvidos com música, com dança e com o canto. Cantar me chamou a atenção de uma forma encantadora.

Cantando:
eu poderia falar sobre minhas raízes
eu poderia defender o meu bairro e fortalecer a música de rua.

Algumas vezes a polícia aparecia e prendia todo mundo, alegando que samba era coisa de marginal, que as pessoas estavam cometendo "Crime de Sambar”

Aliás, qualquer tipo de afro-manifestação era vista como coisa ruim, algo prejudicial à sociedade baiana.
fosse por conta da capoeira...
fosse por conta dos grupos de samba...
fosse através do candomblé...

Eles diziam que candomblé era coisa do demônio, por isso invadiam os terreiros e destruíam tudo.

Só que existe uma palavra que nos acompanha: chama-se "RESISTÊNCIA".
Derrubamos eles com arte, com música, com alegria, e sem violência.

A música da Bahia, sem percussão não funciona. Os tambores estão nos guetos, nas periferias.

Existe um verso que diz assim:

A Alegria da Cidade

A minha pele de ébano é
A minha alma nua
Espalhando a luz do sol
Espelhando a luz da lua

Tem a plumagem da noite
E a liberdade da rua
Minha pele é linguagem
E a leitura é toda sua

Sera que você não viu
Não entendeu o meu toque
No coração da América eu sou jazz
sou rock

Eu sou parte de você
Mesmo que você me negue
Na beleza do afoxé
Ou no balanço do reggae

Sou a cor da Bahia
Eu sou você
E você não sabia

Liberdade, Curuzu,
Harlem, Palmares, Sowetho, Malê

Nosso céu é todo blue
E o mundo é um grande ghetto

A pesar de tanta dor que nos invade
Somos nós a alegria da cidade
A pesar de tanta marginalidade
Somos nós a alegria da cidade


Quando essa música tocou no rádio toda a cidade se apaixonou, os opressores passaram a acompanhar nosso jeito.

Toco:  ”Alegria da cidade” e “ Capoeira”

São João

Voltando ao meu bairro, todo ano no mês de junho, os Estados que compõem a região nordeste do Brasil comemoram o São João. São as chamadas comemorações juninas. A música tocada nessa festa é o forró. O maior ícone desse estilo musical é um senhor chamado: LUIZ GONZAGA.

Respeitado em todo o país, ele saiu de Pernambuco, levando sua poesia, sua música e seu estilo de vida.

Nas canções ele retratava as belezas produzidas pelo homem do campo, as dificuldades sofridas pelos nordestinos que muitas vezes migravam para São Paulo e Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor na cidade grande.

Sua música clamava por justiça, defendia os pobres, o meio ambiente, e claro, as meninas, que nas suas canções eram sempre lindas.

Eu toco riacho do navio.
 
Paralelo a isso, nas periferias comemorava-se o forró junto com as manifestações de samba junino.

o samba junino é literalmente música de rua, pois o seu foco principal era cruzar ruas e avenidas, entoando cantigas com batuques acelerados.

E os moradores seguiam o cortejo cantando as músicas; era muito bom.

Homenageava-se a mulher, o meio ambiente, os idosos, para que os jovens vissem neles uma fonte de sabedoria.
                       
Os homens se reuniam cada um com seu instrumento: timbau, tamborim, pandeiro, banjo, congas, reco-reco, cuíca e ganzá.

As crianças cresciam envolvidas com aquela disputa musical, por causa da música passavam a defender seu bairro com muito orgulho.

toco: “Quilombolasoul” e “Deusa do amor”

Há alguns anos atrás estive lembrando dessa fase na minha infância, e pude constatar o quanto foi rica pra mim. Eu falo em riqueza da alma.
                               
Muitos jovens de hoje, envolvidos com crimes, com armas e o mundo anda violento.

Vi na TV uma troca de tiros entre policiais e bandidos, mudei de canal e estavam mostrando guerras, de novo muitos tiros. Acho as armas tristes. Mas também pude observar que ali existia um som de percussão, que é o ra ta ta ta das metralhadoras.
Muito embora essa percussão seja um pouco parecida, ela traz efeitos contrários, traz malefícios irreparáveis à sociedade como um todo.

Fiz uma canção que vou mostrar e falo disso.

"Saudade daquela batucada"

Castro Alves

Como compositor, eu diria que minha música é para combater determinadas injustiças, denunciar as discriminações e falar de amor.

Infelizmente ainda convivemos com vários tipos de preconceitos, e um desses, é o preconceito racial.

Acredito que seja uma das maiores doenças que permeia a atmosfera da humanidade.

Lá no Brasil, muito antes de ser assinada a lei que colocava um fim à escravidão, existia um movimento abolicionista feito por escravos libertos, e alguns simpatizantes da causa dos negros. Eles se reuniam e compravam a libertação de muitos escravos ainda não libertos, claro.

Existiu um rapaz chamado Castro Alves, sua família tinha seus criados, mas não os castigavam.

Na casa onde nasceu, havia uma mulher chamada Leopoldina. Ela era sua ama-de-leite. Além de amamentá-lo, na hora dele dormir, cantava cantigas de ninar com letras trocadas, feitas por ela falando da áfrica, falando sobre tráficos negreiros, falando do horror da escravidão.

Ela dizia que quando ele crescesse, ele iria defender os escravos, e quando ele foi crescendo e por algum motivo acontecia algum castigo em praça pública, ela mostrava pra ele, e dizia:

"Quando você crescer, jamais faça essas coisas"

"Jamais maltrate os escravos"

"Seja um homem do bem"

Esse jovem se tornou um dos maiores poetas brasileiros, aliás, falar em poesia brasileira sem citar Castro Alves é não falar em poesia brasileira.

Ao longo da sua curta vida, ele foi um dos mais efetivos defensores dos escravos. Através das suas poesias ele levou consciência a grande parte da população que aos poucos se juntou aos abolicionistas, unindo forças para além de alforriar os escravos, devolvê-los de volta à mãe áfrica.

Eu não podia perder a oportunidade de também fazer uma canção.

Toco: "Ao poeta Castro Alves" depois "Como uma onda no mar”

     bossa nova

Antes de dar continuidade aos demais assuntos que trouxe para mostrar pra vocês, lembrei que neste ano a bossa nova faz aniversário. Ela está completando 50 anos, meio século de beleza.

Eu também escutei muita bossa nova, e é sempre bom lembrar dos mestres que fizeram parte dela: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell, João Gilberto.
Vou mostrar uma coisa:
                                    
   "Garota de Ipanema"
   "Corcovado"
   "Eu sei que vou te amar"

 

     Blocos afros

Não posso esquecer do mestre Bob Marley, de Etta James, Marvin Gaye, The Jackson Five, Chuck Berry, James Brown, B.B. King, Miles Davis, Jimi Hendrix e tantos outros maravilhosos.
 
Esses artistas influenciaram nossas vidas.
                                     
Os homens brasileiros, principalmente os baianos passaram a usar cabelos black-power, calças grandes, sapatos pretos brilhantes e saíam para dançar nas boates.
 
Por causa do reggae, os cabelos também começaram a ficar "dread lock". Tudo isso pela paixão por Bob Marley, e por suas mensagens.
 
Em seguida os blocos afros:
Ylê Aiyê, Olodum, Muzenza e outros
 
Esses blocos saem no carnaval exaltando a beleza negra e fortalecendo a luta contra a discriminação racial.
 
O objetivo dessas entidades é preservar, valorizar e expandir a cultura afro-brasileira, assim vêm homenageando os países, nações e culturas africanas e as revoltas negras brasileiras que contribuíram para o processo de fortalecimento da identidade étnica e da auto-estima do negro brasileiro, tornando populares os temas da história africana, vinculando-os com a história do negro no Brasil, construindo mesmo um passado, uma linha histórica da negritude.
 
Esse movimento rítmico musical, inventado na década de 70, foi responsável por uma revolução no carnaval baiano. A partir desse movimento, a musicalidade do carnaval da Bahia ganha força com os ritmos oriundos da tradição africana, favorecendo o reconhecimento de uma identidade peculiar baiana, marcadamente negra. O espetáculo rítmico-musical e plástico que os blocos exibem no carnaval emociona baianos e turistas e arranca aplausos da população.
 
A riqueza visual e sonora dos blocos afros retoma todas as formas expressadas na evolução dos movimentos de renascimento negro-africano, negro-americano ou afro-americano, as decodifica para o contexto específico da realidade baiana, sem perder de vista a relação de identificação entre todos “os negros que se querem negros” em qualquer parte do mundo, ressaltando sempre o caráter comum da origem ancestral, de um passado comum que nos torna irmãos.
 
Os blocos afros são hoje um patrimônio da cultura baiana, um marco no processo de reafricanização do carnaval da Bahia. E além de expressarem o que há de mais belo na cultura negra, no carnaval, durante todo o ano realizam um importante trabalho social em suas comunidades, todas carentes. Profissionalizam jovens através de oficinas de inclusão digital, oficinas de dança, cursos livres de teatro e de música, e muitas outras atividades.

Preparei um clip, nele vocês poderão observar a expressão da população baiana no carnaval, em tempos antigos e atuais. A música que acompanha o clip está no meu primeiro disco. Chama-se Brilho e Beleza.

Mais uma vez eu quero agradecer a todos por esse momento, por essa alegria. Carla Guerron e Julio Carrion. Um beijo a todos e paz! 

 



Last updated December 29, 2008